Ameaças, agressões e também falta de apoio dentro dos partidos dificultam as candidaturas de pessoas trans e travestis
Robeyoncé Lima foi a primeira transexual do Norte e Nordeste a colocar o nome social [nome pelo qual a pessoa travesti ou transexual prefere ser chamada] na carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Foi também a primeira deputada trans de Pernambuco, eleita em 2018 com 39 mil votos no mandato coletivo Juntas. Nas eleições de 2022, alcançou 80 mil votos ao tentar uma cadeira de deputada federal, mas não foi eleita em função das regras de proporcionalidade.
Em 2024, ela era muito cotada para concorrer a uma cadeira no legislativo municipal, mas anunciou recentemente que não tentará nenhum cargo em outubro. A decisão de Lima espelha o que fez a intelectual e ex-deputada estadual Erica Malunguinho, que retirou sua candidatura a deputada federal por São Paulo em 2022.
Essas duas decisões vão na contramão de levantamentos que verificam um aumento de candidaturas de pessoas trans e travestis na última década no Brasil e chamam a atenção para os motivos que fazem essas lideranças deixarem a política institucional.
Representantes de entidades que atuam na promoção da diversidade dizem que a violência política de gênero e a falta de apoio dos partidos são as principais barreiras para a permanência das pessoas trans e travestis na política institucional.
“Quando falamos de um corpo trans na política, não é basicamente uma candidatura. É uma candidatura que advém de um ambiente hostil desde sempre. Há barreiras políticas, partidárias, sociais, escolares e familiares”, afirma o cientista político Miguel Soares Silveira, da Universidade de Barcelona, que pesquisou a evolução quantitativa das candidaturas de pessoas trans e travestis no Brasil entre 2002 e 2020.
Não há, no cadastro de candidaturas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um campo de preenchimento para declaração de gênero “travesti ou transexual”, mas desde 2018 o TSE permite a inclusão do nome social no título de eleitor e na candidatura. Nas eleições de 2020, 171 pessoas optaram por utilizar o nome social, o que representa 0,03% dos 557 mil registros.
A eleição municipal de 2024 servirá para verificar se houve um aumento. Um levantamento a partir de autodeclaração numa plataforma online, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a organização VoteLGBT+, registrou 147 pré-candidaturas de pessoas trans e travestis até meados de julho. Os dados oficiais do TSE só serão divulgados após 15 de agosto, quando termina o prazo de registro.
Robeyoncé Lima elenca três motivos para não se candidatar este ano. “A violência política dirigida a corpos como o meu, o imperativo de que esses corpos precisam ocupar determinados lugares, e a insurgência deste mesmo corpo buscando elaborar suas próprias estratégias e deliberações foram alguns dos fatores que me levaram a tomar essa decisão”, disse.
Ameaças e violência
No Brasil, a primeira vereadora travesti foi Kátia Tapety, em 1992. Ela foi reeleita três vezes na cidade de Colônia, no Piauí, mas até 2002 não houve novas candidaturas de pessoas trans e travestis, de acordo com Silveira.
Em 2020, 30 pessoas trans e travestis foram eleitas, de acordo com levantamento da Antra: 275% a mais do que em 2016. “Há uma luta contínua e latente com a qual os corpos trans precisam se deparar ao entrar na política institucional: como você vai se sentir bem num ambiente que todos os dias reforça a ideia de que você não deveria estar ali?”, questiona o pesquisador.
Entre as pré-candidaturas já mapeadas pela VoteLGBT, 82% são de mulheres trans e travestis. Para elas, participar da política institucional significa também lidar com a violência política de gênero. A Lei 14.192, que considera violência política qualquer ação ou omissão para impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos de uma mulher, completa três anos no próximo mês. Desde sua entrada em vigor, ela já levou a 215 denúncias no Ministério Público Federal (MPF). Dez estão relacionadas a parlamentares trans e travestis.
O último registro refere-se a um ataque ocorrido em 6 de junho passado, quando o deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG) atacou a deputada Erika Hilton durante uma reunião da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados. Ferreira já foi condenado por danos morais pela Justiça de Minas Gerais por atacar a também deputada federal Duda Salabert (PDT-MG), em 2023.
Os dados do MPF mostram, porém, que é no âmbito municipal que ocorrem os principais ataques de violência política de gênero. Vereadoras são os alvos mais frequentes nos casos investigados, representando 27% do total de denúncias. “Nas câmaras municipais é onde a situação é mais grave, pois os municípios são espaços afastados da visibilidade. E nós não temos um levantamento de quantas mulheres trans existem com cargos de vereadora”, afirma a coordenadora do Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero do MPF, Raquel Branquinho.
Segundo ela, os casos de violência política de gênero contra pessoas trans e travesti costumam incluir ameaças de agressão física, até mesmo estupro. “Há mecanismos de não aceitação da orientação sexual, da identidade, do corpo e da aparência, aspectos fortes de discriminação, de querer privá-las de ocupar determinados espaços”, diz a procuradora.
Ela destaca ainda o crescente uso político da pauta anti-trans como plataforma de campanha. “Determinados entes políticos tentam se cacifar às custas do discurso de ódio, impulsionando a violência contra as pessoas trans na política. A violência não ocorre só na sociedade ou em função da religião, ela acontece no próprio parlamento.”
Dos casos de violência política de gênero contra pessoas trans analisados pelo MPF, dois aconteceram durante a campanha eleitoral e os demais no período do mandato. Quatro deles continuam sendo investigados.
Em maio deste ano ocorreu a primeira condenação por violência política de gênero enquadrada na Lei 14.192, que é de 2021. O Tribunal Regional Eleitoral no Rio de Janeiro (TRE-RJ) condenou o deputado estadual Rodrigo Amorim (União) por ter usado o plenário da Assembleia Legislativa para se referir à vereadora Benny Briolly (PSOL-RJ) como “boizebu” e “aberração da natureza”.
Amorim, que ficou conhecido nacionalmente por quebrar uma placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, foi condenado a 1 ano e 4 meses e meio de prisão e pagamento de multa. Por ser réu primário, a pena foi convertida a 70 salários-mínimos e prestação de serviços à população em situação de rua.
“A violência política de gênero precisa ser encarada como um processo de decolonialidade, pois é reprodução de um sistema que não aceita mulheres, e mulheres negras e trans, no mesmo espaço de poder dos homens”, afirma Briolly, que é pré-candidata à reeleição em Niterói.
Apesar dessa vitória, para a vice-diretora do VoteLGBT+ Bru Pereira, falta uma política de Estado no Brasil que consiga dar apoio a uma pessoa trans e travesti vítima de violência política de gênero. Em 2022, a atual deputada federal Duda Salabert foi votar com colete à prova de balas, lembra Pereira. Já Erika Hilton precisou solicitar escolta armada quando era vereadora em São Paulo.
O mesmo acontece com a deputada estadual Linda Brasil (PSOL-SE), que vive sob escolta policial por causa de ameaças. Desde 2020, ela recebe ataques sistemáticos relacionados ao seu corpo e identidade de gênero. Há cerca de um ano, porém, passou a receber ameaças diretas. Foram três ameaças de morte, que chegaram por e-mail, a primeira delas em junho de 2023.
Linda procurou a Polícia Civil e o Ministério Público, um inquérito foi aberto para apurar os casos, mas até hoje não se sabe a autoria. “Um dos e-mails tinha a foto de uma arma. Eles dizem que não conseguem o IP de onde partiu as mensagens por a informação estar em servidores internacionais”, diz.
A violência não é a única barreira à permanência das pessoas trans e travestis na política institucional. Elas lutam ainda contra a falta de apoio dentro dos partidos, o que se reflete também na distribuição desigual de verbas de campanha. Em 2020, a VoteLGBT+ descobriu que os partidos destinaram, em média, apenas 6% dos recursos para as candidaturas LGBTQIA+.
Linda Brasil descartava entrar na política institucional, mas tudo mudou após ela lutar pelo direito de usar o nome social dentro da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Depois de abrir um processo administrativo contra um professor que se recusava a modificar o nome dela nos documentos, tornou-se a primeira estudante a obter a mudança na carteira estudantil. Com isso, aproximou-se dos movimentos estudantis e foi convidada a se filiar ao PSOL.
Em 2016, ela concorreu pela primeira vez a um cargo público ao tentar a vereança de Aracaju. A campanha, feita com pouco dinheiro, gerou cerca 2,3 mil votos, e Linda não foi eleita por causa do coeficiente partidário. Em 2018 tentou se eleger deputada estadual. Desta vez, apesar de novamente não ter sido eleita, alcançou cerca de 10 mil votos. “O partido nessa época não tinha nem fundo eleitoral, mas a campanha deu engajamento. Quando saiu o resultado, chorei de felicidade, pois tinha conseguido eleitores em todas as 75 cidades do meu estado”, afirma.
Em 2020, Linda foi eleita na condição de vereadora mais votada de Aracaju e primeira parlamentar eleita pelo PSOL na cidade. Em 2022, tornou-se deputada estadual, sendo a sétima candidata mais votada no estado e a primeira na capital.
Por tudo isso, ela esperava ser a candidata a prefeita do partido em 2024, mas diz que sua trajetória não foi levada em consideração. “Não posso deixar de expressar que a decisão foi tomada, de maneira inédita, apenas pela direção do partido, sem ouvir a militância em plenárias de base, como tradicionalmente éfeito no PSOL”, escreveu em um post no X. Questionado, o PSOL de Sergipe não respondeu.
Fonte: Brasil de Fato / Deutsche Welle