A precarização crescente do trabalho por meio de apps está criando um campo fértil para a extrema direita? Essa é a hipótese que a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado pretende investigar com ajuda europeia.
Foram 18 de meses de preparação e um longo processo seletivo, em que a antropóloga, socióloga e cientista política brasileira Rosana Pinheiro-Machado consolidou conhecimentos e abordagens acumuladas ao longo de seus 20 anos de carreira como pesquisadora. Além, é claro, de uma hipótese que há muito a instiga: estariam os trabalhadores informais, estruturados em plataformas tecnológicas, formando uma base de sustentação à ascensão de extremistas de direita pelo mundo?
Ela se refere a motoristas de aplicativos, entregadores, vendedores de produtos on-line, etc. “Sempre me intrigou muito o que fazia com que esse trabalho ‘plataformizado’ levasse as pessoas para a direita. [As razões permeiam] toda a natureza do trabalho e como ele se reconfigura sem patrão, trabalhando por si próprio e de forma isolada. Isso favorece a vinculação com ideias neoliberais, amparadas pela crença somente no mérito próprio”, comenta Pinheiro-Machado.
A ideia é que eles vivam uma imersão e realizem entrevistas e pesquisas de campo. No fim, esse material será tabulado e se transformará numa base de dados que pode se tornar uma ferramenta para a compreensão desse fenômeno dos tempos atuais.
Pinheiro-Machado concedeu entrevista para a DW Brasil.
DW Brasil: Por que a ideia de estudar a relação entre trabalhadores informais com políticos de direita?
Pinheiro-Machado: É uma questão que sempre atravessou minhas pesquisas anteriores. Eu estudei camelódromo e empreendedorismo popular por uma década, já mostrava isso há 18, 19 anos atrás. […] Depois, com os motoristas de Uber, isso se torna mais latente, aí já são os bolsonaristas [apoiadores dos discursos do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, de extrema-direita]. Sempre me intrigou muito o que fazia com que esse trabalho “plataformizado” levasse as pessoas para a direita.
[As razões permeiam] toda a natureza do trabalho e como ele se reconfigura sem patrão, trabalhando por si próprio e de forma isolada. Isso favorece a vinculação com ideias neoliberais, amparadas pela crença somente no mérito próprio. E quando não dá certo, é culpa dos governos. Não há uma discussão de classe, da precarização do trabalho… Isso sempre foi uma base, uma linha que juntou as minhas pesquisas nos últimos anos.
O que a gente viu no fim dos anos 2010 foi que essa lógica não é nova e é muito forte em países emergentes, com toda uma lógica de incentivar o empreendedorismo popular, a fomentação de novas camadas médias. Há uma alinhamento dessas classes que estão acima da linha da pobreza mas são precarizadas, odeiam a identidade de classe trabalhadora e cultivam uma base moral religiosa.
No Brasil você tem os evangélicos, na Índia o conservadorismo hindu, nas Filipinas também o cristianismo. O conservadorismo moral se alinha muito forte ao individualismo e aí há as figuras dos autoritários que pegam essas classes precarizadas, autoexploradas, de pessoas que trabalham 20 horas por dia na esperança de ganhar dinheiro. E essas pessoas passam a cultivar interesses em comum com esses autoritários. E nunca foi feita uma investigação que explique esse nexo de forma clara.
De onde veio a premissa de que haja relação entre trabalhadores informais e políticos de direita?
É uma questão já clássica da sociologia, que já aparece tanto no [filósofo Karl] Marx quanto no [sociólogo] Max Weber: a ideia do lumpemproletariado, que não está sindicalizado, regulado. E, então, acaba se alinhando ao status quo. Isso aparece no processo de individualização e modernização na teoria do Weber.
A religião também leva a isso, pelo processo de individualização, do “você com Deus”, no trabalho segundo a ética protestante, na ideia de trabalhar duro para vencer. […] Mas existem outros fatores que vamos observar junto a isso: primeiro, evidentemente, o próprio isolamento, a não regulamentação e a ideologia de que a ideia de trabalhar “plataformizado” é o “por si próprio”. São trabalhos profundamente isolados em que as pessoas passam muitas horas sozinhas, constantemente postando e lendo [o que é postado nas redes sociais], porque o trabalho é no ambiente digital, dominado por populistas. […]
Tem também a questão dos influenciadores digitais e o alinhamento político a eles. Não estão vendendo só produtos, estão prometendo um estilo de vida, e isso é altamente político. Por fim, o aspecto da desinformação, que é potencializado sobre pessoas trabalham sozinhas e expostas ao ambiente digital o dia todo. […] Conforme a pessoa vai se “plataformizando’, crescendo e empreendendo, mais ela segue políticos de extrema direita. Ou ao contrário. O que vem primeiro: o ovo ou a galinha? Provavelmente os dois, porque o mundo é complexo. Queremos mostrar todos esses caminhos.
Nos últimos anos, nove pesquisadores apoiados pelo ERC foram laureados com o Prêmio Nobel. Isso serve como um endosso inicial à sua pesquisa?
Dá um peso de fato maior. O Nobel é resultado de pesquisa de ponta e reconhece os melhores de cada área. Não estou dizendo que sou genial, muito pelo contrário. Mas houve um processo de preparação: foi um objetivo de vida meu conseguir esse financiamento porque isso redimensiona a minha vida em muitos aspectos.
O Nobel é algo tangível que mostra as possibilidades após ter um financiamento individual dessa grandeza. […] O ERC, a gente brinca, é o Nobel da academia, é aquilo que os pesquisadores europeus querem e respeitam muito. […] É um processo tão rigoroso [para ser contemplado com o financiamento] que o resultado vai ser pesquisa de excelência. Não quer dizer que eu seja excelência, mas sim que o processo me ajudou a entender o que é excelência.
Nesse sentido, o financiamento, além de viabilizar o projeto em si, também abre portas para o futuro da sua carreira?
Sim. Esse financiamento é um divisor de águas na minha vida justamente pela importância que ele tem. […] E espero que consigamos ajudar a revelar quais são as potencialidades políticas desse processo de “plataformização”. Se nossa hipótese estiver certa, trata-se de uma bomba-relógio, uma máquina política. E precisamos entender como funciona essa máquina.
Fonte: DW Brasil | Edison Veiga