Nova portaria permite contratações generalistas e sem necessidade de concurso público
As novas regras para carreiras do funcionalismo federal, anunciadas pela ministra Esther Dweck, têm desagrado os servidores. Em 14 de agosto último, o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, publicou Portaria nº 5.127, que atualiza as diretrizes para pedidos de reestruturação de carreiras na administração pública federal.
De acordo com a pasta, a finalidade é “garantir um registro transparente da elaboração de propostas de carreira e promover, ao longo dos anos, o aprimoramento gradual e coerente da gestão pública na organização da força de trabalho do Estado”.
Ainda, segundo o órgão, a mudança visa “fortalecer a lógica de que carreiras públicas devem ser criadas para prover políticas públicas e que, portanto, as carreiras devem estar vinculadas às respectivas políticas, e não a um órgão ou entidade específico. A simplificação da estrutura remuneratória e aprimoramento dos mecanismos de reconhecimento e de desenvolvimento do servidor evitam a criação de novas carreiras para desempenhar atribuições já exercidas por carreiras existentes.”
Para Lincoln Ramos, diretor do SindPRevs/PR (Sindicato dos Servidores Públicos Federais em Saúde, Trabalho, Previdência Social e Ação Social do Estado do Paraná e da FENASPS (Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social), o principal impacto da medida é transformar as carreiras específicas em carreiras gerais. Isto é, ao invés de contratar uma pessoa para cumprir determinada função, o trabalhador poderá ser admitido para qualquer cargo dentro do serviço público.
De acordo com a liderança, esta modalidade de contratações generalistas e sem necessidade de concurso público, tem uma série de consequências. Entre elas, o aumento das terceirizações e quarteirizações. Esta última acontece quando uma empresa contratada para prestar serviços terceirizados, contrata outra empresa para suprir alguma demanda.
“Não se garante com isso a qualidade do serviço que será prestado. Então, nós temos alguns problemas que envolvem a qualidade daquilo que se presta, quem vai prestar esse serviço, abrindo portas para terceirização, quarteirização e assim por diante. Eu acredito que esse seja o grande nó crítico dessa forma de atuação do governo, onde ele pensa as carreiras, os serviços públicos como um ‘carreirão’. Como uma situação em que qualquer pessoa pode se candidatar para qualquer cargo”, afirma.
Outro problema, segundo ele, é que o documento não estipula como serão as admissões em áreas mais específicas como na Saúde. “Como é uma forma de contratação de ‘carreirão’, ou seja, qualquer pessoa pode se candidatar a qualquer cargo, o documento não deixa claro como ficam as questões extremamente específicas. Por exemplo, não é possível fazer uma contratação para médico, porque tem uma legislação própria que contempla essa carreira”, observa.
Além disso, Ramos destaca que o tempo investido na qualificação destes profissionais pode ser perdido, caso elas não sejam admitidas. “Então, o que poderíamos pensar, agentes de saúde, agente comunitário, agente de controle de endemias, administrativo, laboratório, uma série de outras carreiras dentro da Saúde que, geralmente, não são específicas, poderiam ser contratadas qualquer pessoa e aí você levaria um ano, dois anos, para fazer o treinamento dessas pessoas, para elas adquirirem experiência de campo, e a hora que ela adquire experiência, a hora que ela está, digamos, qualificada para desenvolver essa função, ela pode simplesmente ser demitida. Isso é uma perda que esse sistema permite”, assinala.
Conforme alerta o sindicalista, o fato de permitir o ingresso sem estabilidade, além de levar a alta rotatividade de trabalhadores e prejudicar a progressão na carreira, afeta a qualidade do serviço oferecido à população. “A cada troca de governo, nós podemos uma troca de funcionalismo e um recomeço dos serviços prestados. Você tem um exemplo da Saúde, mas isso acontece em todas as carreiras, em todo o serviço público de uma forma geral, o que acaba gerando também prejuízo na continuidade do serviço prestado”, adverte.
“Uma fiscalização, por exemplo, uma carreira que não se mantém ao longo do período, ela tem prejuízo de continuidade no serviço prestado. Então, em todo o serviço público de uma forma geral, você vai ter algumas questões que são muito específicas, que têm legislação própria para lidar com aquilo, mas você vai ter aquelas situações que vão funcionar como ‘carreirão’, que qualquer pessoa pode entrar nesse ‘carreirão’ e não há uma obrigatoriedade que isso seja feito através de concurso público, o que abre as portas mais uma vez para terceirização, quarteirização e assim por diante, gerando prejuízo da continuidade do serviço prestado”, salienta Ramos.
Dados do Portal de Transparência demonstram que uma em cada três vagas do serviço público federal está desocupada, chegando a defasagem de 34%. E em 42 das 192 áreas existentes, a desocupação superou as vagas preenchidas. Os Ministérios da Saúde e da Educação, o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) e a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) estão entre os que têm o maior número de postos vagos. As informações são referentes ao período de 2016 a 2022.
Terceirizações crescem em todas as esferas
Ramos reforça que as chamadas contratações terceirizadas e quarteirizadas têm sido uma estratégia adotada por todos os governos em âmbito federal, estadual e municipal. “Todos os governos têm utilizado dessa ferramenta em certa medida para suprir os cargos necessários na administração pública, e também para burlar a lei, porque todos os órgãos federados têm a lei de responsabilidade fiscal. E acabam utilizando desse recurso para burlar a lei e usar parte desse recurso em outras demandas, seja do município, seja do estado, seja do governo federal”, avalia.
Conforme informado pelo Portal Verdade, segundo levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 2017 e 2021, as contratações sem vínculo formal na administração direta dos estados saltaram de 266 mil para 444 mil, um aumento de 67% (relembre aqui).
“Então há um prejuízo financeiro, direto e indireto. Também prejuízo do serviço prestado, da qualidade do serviço prestado, da continuidade do serviço prestado, porque de tempos em tempos essas pessoas são renovadas, são demitidas, ou precisam passar por um novo processo celetista, e acaba interrompendo aquele processo de aprendizagem desse servidor”, evidencia.
Para Ramos, é fundamental que seja discutido com a população qual tipo de serviço público ela deseja. “Precisamos discutir isso com a sociedade, que tipo de serviço público a sociedade deseja. Se ela deseja um serviço de qualidade, e eu acho que é isso que a população deseja, ninguém gosta de ser mal atendido, por isso defendemos o serviço público, porque ele consegue garantir minimamente a qualidade daquilo que está sendo prestado para a população”, analisa.
Ainda, a portaria prevê o estabelecimento de um “período mínimo de, preferencialmente, 20 anos para o alcance do padrão final da carreira”. Além disso, o tempo de serviço não será o único critério para a progressão, que deverá observar também o desempenho individual e coletivo do servidor, perfil, qualificação e comprometimento.
A legislação ambém restringe a criação de bônus ou parcelas similares vinculadas ao desempenho da função, como os concedidos aos servidores da Receita Federal e advogados da AGU (Advocacia-Geral da União).
Mobilizações
Desde o anúncio da medida, várias entidades têm se organizado para tentar barrar o regimento. O Unacon (Sindicato Nacional dos Auditores e Técnicos Federais de Finanças e Controle) protocolou uma ação na Justiça Federal, em Brasília, pedindo a suspensão da medida. A judicialização da portaria do governo Lula (PT) foi organizada pelo Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado).
Deputados do PSOL também protocolaram na Câmara um Projeto de Decreto Legislativo para sustar a portaria. De acordo com a legenda, a iniciativa é uma consequência “nefasta do arcabouço fiscal”. Ainda, segundo o partido, que compõe a base aliada do governo Lula, a portaria extrapola seu poder regulamentar invadindo a seara do Legislativo ao abrir caminho para uma espécie de reforma administrativa, que prejudicaria as carreiras dos servidores.
Segundo Ramos, a FENASPS também tem feito uma série de ações para contrapor a medida. A entidade está articulando junto a Câmara dos Deputados e Senado, tentando convencer os parlamentares a revogar a portaria.
“Acho que é importante lembrar que atualmente existe uma greve na base da FENASPS, que é os servidores do INSS. E parte dessa greve é exatamente por conta dessa qualidade de serviço, porque esse ‘carreirão’ também atingiria o INSS, a terceirização, a quarteirização também atingiria o INSS”, assinala.
“Uma pessoa que entra hoje no INSS, se ela não passar pelo treinamento adequado, não tiver o conhecimento adequado, ela vai acabar cometendo erros ou negando benefícios que muitas vezes a pessoa tem direito, o que acaba gerando um prejuízo, uma demora para que esse segurado tenha acesso aquele benefício, já uma pessoa bem preparada, bem conduzida e ciente da sua responsabilidade vai resolver muito mais rapidamente esse processo e, portanto, não vai gerar nem prejuízo para a União e nem prejuízo para o segurado”, complementa Ramos.
Na última semana, o governo federal anunciou que teria fechado acordo com servidores do INSS e aguardava a suspensão da greve. Porém, em nota, a FENASPS comunicou que a mobilização continua. Segundo a entidade, a paralisação alcança servidores em trabalho presencial e teletrabalho em 24 estados e cerca de 450 agências do INSS.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.