A decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que estabelece que a Justiça comum deve analisar a alegação de fraude em contratos de prestação de serviço, tem levado trabalhadores e trabalhadoras, lesados em seus direitos, a enfrentar uma saga pelos tribunais tanto da Justiça Comum como o Trabalhista, e ainda correndo o risco de não ter seus direitos reconhecidos.
Casos assim têm sido recorrentes quando a Justiça comum é acionada para ver se há existência de ilegalidade no contrato e, somente se houver fraude, algum vício de consentimento, o processo será remetido à Justiça do Trabalho para se verificar a existência do vínculo de emprego. Um levantamento do jornal Valor mostrou que já existe posicionamento nesse sentido em pelo menos cinco Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs): de São Paulo, Campinas e região (interior paulista), Paraná, Minas Gerais e Alagoas.
O advogado, especialista em Direito do Trabalho, Ricardo Carneiro, sócio do escritório da LBS Advogados e Advogadas, que assessora a CUT Nacional, explica que a decisão do Supremo Tribunal Federal interfere na competência do Justiça do Trabalho por reconhecer que ali há uma relação entre duas pessoas jurídicas e, que isso é uma relação cível, não uma relação de trabalho e, em razão disso, determina o envio desses processos para a Justiça Comum.
“O juiz da Vara Cível que julgará essa ação analisará ali aquela relação contratual e, se ele entender que há de fato uma fraude nessa relação, ele remete essa ação à Justiça do Trabalho. Estamos aprendendo a lidar com isso, mas de fato há uma larga ingerência do Supremo Tribunal Federal nas competências constitucionais da Justiça do Trabalho, estabelecidas pelo artigo 114 da Constituição Federal”, conta Carneiro.
O secretário de Assuntos Jurídicos da CUT, Valeir Ertle, e o advogado criticam esse posicionamento da maioria dos ministros do Supremo que, segundo eles, desconhecem os direitos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e não pensam nas consequências que a liberação irrestrita da pejotização e terceirização causam à arrecadação da Previdência Social e à União, já que as chamadas Pessoas Jurídicas (PJs) e Micro Empreendedores Individuais (MEIs), pagam menos impostos e raramente contribuem com a Previdência.
Para Valeir, da forma como está sendo feita, a pejotização é uma fraude porque até o vendedor, o caixa, que deveriam ter carteiras de trabalho assinadas se tornam pessoas jurídicas, causando um prejuízo enorme ao trabalhador e ao governo.
O empregador não recolhe os 20%, não recolhe o FGTS, não paga o 13º salário, as férias, e os demais direitos. A Previdência está deficitária em função de todas essas fraudes contratuais
“A forma de tributação é muito menor do que a do trabalhador comum. Então, a contratação via pejotização não é só uma fraude de trabalho propriamente dita, mas uma fraude fiscal”, declara Carneiro.
Ele explica ainda que quando o trabalhador é contratado como pessoa jurídica, mas dele é exigido uma jornada de trabalho fixa, uma relação de subordinação, fica claro que essa relação é típica de trabalho, de emprego, porque ela foi constituída unicamente para fraudar a CLT.
“O Supremo Tribunal Federal tem que ter os olhos pra isso tudo, mas esse movimento de ampla liberalização tem gerado uma consternação muito grande entre os magistrados e advogados trabalhistas”, afirma Carneiro.
Os argumentos do Supremo para enviar à Justiça Comum as ações dos contratos de trabalho porque essa é uma forma de diminuir a judicialização é contestada pelo advogado.
“Há estudos que comprovam que o problema do direito do trabalho não é a grande judicialização, mas sim o extenso descumprimento do direito do trabalho pelos empregadores que usam de formas criativas para fraudar os direitos trabalhistas”, conta.
Carneiro se refere a estudo da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), que reúne cerca de 3.500 juízas e juízes do Trabalho em todo o território nacional, encaminhado ao Supremo Tribunal Federal sobre a litigiosidade no Brasil. E a conclusão desse estudo é que o problema não é propriamente a alta litigiosidade, mas o grande número de processos trabalhistas pelo descumprimento da legislação trabalhista por parte dos empresários.
Por sua vez, o dirigente cutista reclama de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), instância logo abaixo do Supremo, também tem esvaziado decisões de competência da Justiça do Trabalho.
“É preciso retomar o entendimento, que nos foi retirado na reforma Trabalhista, de 2017, de que independente da forma pela qual a pessoa é contratada, ela trabalha, tem deveres e obrigações”, diz Valeir.
Na avaliação dele para se coibir a pejotização é preciso que haja maior fiscalização por parte do Ministério do Trabalho e Emprego.
Sem fiscalização as empresas contratam trabalhadores como PJs e eles estão lá subordinados com todos os quesitos de uma relação de trabalho celetista que deveria ser regida pela Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT
O secretário de Assuntos Jurídicos diz que a CUT, juntamente com as demais centrais, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Anamatra, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades do direito, têm procurado dialogar com os ministros do Supremo para que esse tipo de interferência na Justiça do Trabalho seja revisto.
“Temos conversado, tentado mudar o entendimento do STF, levamos um documento assinado por todas as centrais sindicais, só que é um processo lento e demorado. Antes haviam três ministros, o Edson Fachin, a Rosa Weber e o Ricardo Lewandowski que entendiam melhor as relações trabalhistas. O único que está no Supremo é o Fachin e agora temos o Flávio Dino que compreende melhor o nosso mundo. Os demais têm uma visão neoliberal econômica”, diz Valeir. O STF é composto por 11 ministros.
Direito do trabalhador deve ser pauta de toda a sociedade
A preservação das competências da Justiça do Trabalho e a proteção do direito do trabalho são pautas da CUT e do movimento sindical, que têm atuado nos processos que envolvem essa discussão, mas isso não basta, é preciso que essa pauta seja de toda a sociedade brasileira, defende Ricardo Carneiro.
“É preciso uma pauta política nacional de enfrentamento a esse avanço do Supremo Tribunal Federal contra o direito do trabalho e contra a Justiça do Trabalho porque é sobretudo um movimento político de se dizer afinal qual o Brasil que se quer.
“A sociedade precisa dizer se queremos um Brasil sem emprego, sem previdência social, sem arrecadação de tributos, ou se quer um Brasil em que pessoas tenham acesso à dignidade, por meio de empregos de qualidade, e sabendo que se adoecer terá direito a um Sistema Único de Saúde de qualidade e a uma aposentadoria decente. No fundo esse é o debate, que modelo de Brasil que se quer”, Ricardo Carneiro.
Fonte: CUT Brasil