Entidades alertam que a contratação de servidores públicos em regime CLT, traz insegurança jurídica à categoria nas três esferas do funcionalismo. Regra estava suspensa desde 2007
No último dia 6 de novembro, ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) julgaram constitucional trecho da Reforma Administrativa de 1998, que flexibiliza o RJU (Regime Jurídico Único) do funcionalismo público, possibilitando a contratação por outros modelos, como o celetista.
O trecho, agora considerado legal, estava suspenso por decisão liminar desde agosto de 2007. A Corte definiu que a admissão de servidores na administração pública por regime privado vale a partir da publicação da decisão, ficando vedada a alteração de regime dos atuais trabalhadores.
Lincoln Ramos, diretor da Secretaria de Saúde do Trabalhador do SindPRevs-PR (Sindicato dos Servidores Públicos Federais em Saúde, Trabalho, Previdência Social e Ação Social do Estado do Paraná), representante da Fenasps (Federação Nacional de Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social) classifica a resolução como um grande retrocesso para o funcionalismo.
“Vamos voltar a ter nos nossos locais de trabalho, o velho coronelismo, indicações políticas, serviço público de baixa qualidade, troca constante de servidores, principalmente, nos pós-períodos eleitorais, onde cada candidato vai colocar os seus correligionários”, avalia.
Coronelismo foi uma prática política, frequente durante a República Velha, através da qual coronéis coagiam seus subalternos a votarem em seus candidatos para se manterem no poder.
Ramos também sinaliza que, a medida pode favorecer o aumento de contratações terceirizadas e de quarteirizações. Estas últimas acontecem quando uma empresa contratada para prestar serviços terceirizados admite outra empresa para suprir alguma demanda.
“A decisão do Superior Tribunal Federal, abre a possibilidade para contratação por ONGs [organizações não governamentais], contratação individual, abre uma gama de possibilidades de terceirização, de quarteirização muito grande, o que acaba diminuindo muito a qualidade dos serviços prestados”, pontua.
“O servidor terceirizado não pode ter acesso ao totem que é a chave que dá acesso aos sistemas do governo. Vamos pensar em um sistema da previdência, por exemplo, o servidor tem uma chave que consegue entrar no sistema, alimentar o banco de dados e conceder o benefício. Já um servidor terceirizado não pode, pela lei, ter um totem desse. Então, que tipo de serviço ele vai prestar no local de trabalho? Um serviço que não vai ser aquele que vai ter resolubilidade”, acrescenta a liderança.
Ramos reforça os impactos para a qualidade dos serviços prestados à população. “É uma situação bastante preocupante. Pensando no serviço público de uma forma geral, é um retrocesso muito grande, é uma perda muito grande para a qualidade do serviço prestado para a população. O impacto ao longo do tempo, infelizmente, será muito negativo”, analisa.
Entenda
O chamado RJU foi estabelecido pela Constituição de 1988. Dez anos depois, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), fez uma reforma administrativa que o substituiu pelo contrato público de trabalho.
Entre outras medidas, a Emenda Constitucional 19 de 1998 possibilitou a contratação de servidores pelo regime celetista, eliminando a obrigação da adoção do regime jurídico único e dos planos de carreira, que eram exigidos pela Constituição de 1988.
A decisão do Supremo foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 2135, que questionava a regularidade do processo legislativo que aprovou a emenda.
A ADI foi ajuizada pelo PT, pelo PDT, pelo PCdoB e pelo PSB, que alegaram que a emenda não seguiu os procedimentos necessários para sua aprovação, uma vez que, segundo os partidos, a proposta não teria sido aprovada em conformidade com a exigência de votação em dois turnos com maioria qualificada nas duas casas legislativas.
Por maioria de votos, 8 a 3, o STF concluiu que não houve irregularidade no trâmite da proposta, que foi aprovada conforme a exigência constitucional, ou seja, em dois turnos e com o quórum de 3/5 dos votos favoráveis tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.
O tribunal julgou uma ação do ano 2000 que questionava a possibilidade de contratação por um regime privado na administração pública.
Em 2007, a corte concedeu uma liminar restabelecendo o RJU. Desde então, a administração pública voltou a ser obrigada a contratar os servidores por esse regime e valia novamente a redação original da Constituição, que priorizava a contratação por meio de concurso público.
O caso começou a ser julgado de forma definitiva em 2020, mas foi interrompido por pedido de vista. Até esta sessão, apenas a relatora, Carmen Lúcia, e Gilmar Mendes haviam votado. Ela defendeu a inconstitucionalidade da alteração que acaba com o chamado RJU. Já o decano abriu divergência.
A linha aberta por Gilmar Mendes prevaleceu, vencendo os posicionamentos de Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luiz Fux. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso afirmou que acompanhou a divergência em nome da eficiência na administração pública.
Mas o argumento tem sido rebatido por entidades que representam o funcionalismo público, conforme aponta Ramos. “Essa modernização nada mais é do que o velho cabide de emprego. Eu poder contratar e demitir a hora que eu quiser. O político eleito coloca no local, aqueles que ele quiser. Do jeito que ele achar que deve, com contrato precarizado. E o trabalhador passa a não ter compromisso com aquele serviço executado, ganha pouco e sabe que ele pode simplesmente ser demitido a qualquer momento”, diz.
“Qual compromisso que ele vai ter com áreas importantíssimas como saúde, educação, segurança pública? Porque a regra permite que tenha essa contratação em qualquer lugar, não restringe. A única restrição da regra são as chamadas carreiras típicas de Estado, que são a minoria. Então, é realmente uma decisão bastante preocupante e que, infelizmente, a sociedade não está se atentando a essa questão”, adverte.
A redação original estabelecia que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas”.
Pela alteração, o texto passou a ser: “A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.”
Luta por concurso público permanece
Os servidores públicos, no geral, são contratados por meio de concurso público de provas e títulos. Ao entrar, depois de três anos, adquirem estabilidade. Esses são os estatutários. Aqueles não submetidos a esse regime são funcionários contratados no sistema da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
O servidor público tem estabilidade e só é desligado se passar por um processo administrativo depois de uma falha funcional grave. Já os funcionários celetistas podem ser dispensados a qualquer momento.
Ramos evidencia que a luta pela realização de concursos, defesa da carreiras e dos serviços públicos permanece. “Vamos continuar pressionando o governo para que abra concurso público pelo regime jurídico único e não por mecanismos terceirizados, mas sabemos que o governo tem uma carta branca na mão e que em algumas situações, obviamente, ele vai usar. E cabe a nós, enquanto servidores e sociedade, cobrar desse governo, estar atento à qualidade do serviço prestado e cobrar essa qualidade”, afirma.
“Infelizmente, é uma conjuntura bastante negativa que vai exigir de todas as federações e confederações um trabalho árduo para tentar reverter isso a médio e longo prazo. Chamamos todas as outras federações, confederações, centrais sindicais a se engajarem nessa luta, porque quem perde com isso somos todos nós enquanto sociedade”, conclui.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.