Compulsão pelas apostas on line é comparada a epidemia e reforça necessidade de regulamentação dura sobre empresas que lucram às custas da saúde financeira e mental
As bets, apostas esportivas on line, se tornaram presença frequente na vida dos brasileiros nos últimos anos e há quem compare seu alcance e disseminação a uma epidemia. Seus efeitos sobre a saúde psicológica e financeira dos usuários e sobre a economia têm despertado cada vez mais preocupação por parte do poder público e entre profissionais e entidades dessas áreas.
Para se ter uma ideia da presença das bets no Brasil, pesquisa de opinião feita pelo Instituto Locomotiva em agosto apontou que 25 milhões de pessoas passaram a fazer apostas esportivas em plataformas eletrônicas nos sete primeiros meses de 2024, uma média de 3,5 milhões por mês.
Conforme aferido no levantamento, esse intervalo de tempo é menor do que o que o coronavírus levou, 11 meses, para contagiar o mesmo número de pessoas no Brasil no início da pandemia. Em cinco anos, o número de apostadores nas bets chegou a 52 milhões.
“As bets não são diferentes de outros jogos do mesmo tipo. Quem lucra é o proprietário. E para que isso aconteça, o apostador precisa ser cativado, então, a pessoa ganha pequenas quantidades de dinheiro, com uma certa frequência. Mas, além disso, o ‘quase ganhar’ é tão estimulante quanto o próprio ganhar e também é um componente que mantém a pessoa jogando”, explica Lisiane Bizarro, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia e coordenadora do Núcleo de Estudos Translacionais em Adições (Netad) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Outra vantagem para quem lucra com esses jogos é que todo comportamento frequente e que é mantido por uma recompensa ocasional, é muito difícil de ser eliminado ou facilmente controlado. “Portanto, não se trata necessariamente de um resultado sobre o qual a pessoa vai ter controle. O próprio jogo é planejado para que ela se engaje e gaste dinheiro”, acrescenta.
Estes elementos se somam à disponibilidade deste tipo de aposta, resultando num contexto de fácil captura do usuário. “Quando se apostava em cavalos, por exemplo, a pessoa tinha que se dirigir a um determinado local para isso. Agora, é possível apostar em qualquer horário, de qualquer lugar, com a frequência que você quiser, utilizando um celular. Essa facilidade é um componente que aumenta o risco da dependência”, pontua.
Lisiane também chama atenção para o papel negativo da publicidade dos jogos on line e como isso naturaliza a aposta desde cedo. “Uma parte do problema está também na propaganda, feita indiscriminadamente na internet, entre um e outro vídeo, nas redes sociais, via influencers, nos intervalos comerciais da televisão e mesmo em meio à programação infantil. Isso vai habituando as pessoas à presença daquela marca. É como acontecia com os cigarros, por exemplo”, lembra.
Efeitos financeiros
A análise da psicóloga vai ao encontro do que foi apontado pela pesquisa já citada, segundo a qual sete de cada dez apostadores costumam jogar no mínimo uma vez ao mês e 60% dos que já ganharam usaram ao menos parte do valor para apostar novamente.
O pior é que boa parte dos usuários não encara a “fezinha digital” como um vício. Apenas 6% avaliam dessa forma, de acordo com levantamento feito na capital paulista pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio), que está temerosa com o impacto que o uso desses jogos pode ter no aumento da inadimplência e na redução do dinheiro que circula no setor. Ainda de acordo com os dados obtidos, cerca de 25% dos jogadores buscam dinheiro rápido e 9% encaram a atividade como investimento.
Esse conjunto de comportamentos tem se refletido em outras constatações alarmantes. Segundo o Banco Central, os brasileiros estão gastando cerca de R$ 20 bilhões por mês em bets e os apostadores somam 24 milhões de pessoas físicas. E, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio, as apostas online teriam deixado cerca de 1,3 milhão de brasileiros inadimplentes somente no primeiro semestre deste ano.
Nesse universo de jogadores, muita gente é de média ou baixa renda. O Locomotiva apontou que oito de cada dez apostadores são pessoas das classes C,D e E; e dois de cada dez são classe A ou B. O mesmo levantamento do BC mostrou que do montante total averiguado, cerca de R$ 3 bilhões teriam vindo de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família, que tem um total de 20 milhões de cadastrados.
Diante das informações, o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, emitiu nota na qual disse que vai “acompanhar a regulamentação e encontrar mecanismos para evitar que dinheiro dos benefícios sociais sejam utilizados em jogos”.
Efeitos pessoais
Outra questão preocupante são os impactos do vício nos cassinos on line sobre a vida pessoal. Reportagem recente da BBC Brasil mostrou que escritórios de advocacia já verificaram aumento na procura por divórcios motivados pelo vício nesse tipo de jogo e trouxe relatos de pessoas que perderam bens como casa e carro para saldar dívidas.
Além do que isso significa do ponto de vista material, situações como essas também pesam no campo emocional. “Se a pessoa tem um gasto de tempo excessivo em apostas, então tanto a parte financeira quanto a energia, o tempo que ela ocupa com isso, vai faltar para outras coisas. Vai faltar tempo para o convívio com a família, para o lazer, a cultura, o trabalho e o estudo”, destaca Lisiane Bizarro.
Ela salienta ainda que “pessoas endividadas se tornam muitas vezes desesperadas, perdem a rede de apoio porque se envolveram em empréstimos e não pagaram as dívidas e estão sempre pedindo dinheiro emprestado. E essa roda viva não acaba de um jeito muito legal”, alerta a psicóloga.
Do ponto de vista dos prejuízos sociais, Lisiane elenca o isolamento, a precarização de cuidados pessoais, além de problemas no trabalho ou nos estudos. E, do ponto de vista emocional, são comuns comportamentos como a irritabilidade e problemas de sono.
A compulsão pode também afetar a família e se refletir em queixas de saúde relacionadas ao estresse e à sobrecarga de outras pessoas da família ou levar à negligência e até mesmo à violência no cuidado de crianças, idosos e outros dependentes financeiramente do jogador. “Portanto, pode ser um problema silencioso que só vai aparecer na pediatria, na geriatria, na cardiologia e na psiquiatria”, pondera Lisiane.
Regulamentação das bets
A lei que permitiu a entrada das bets foi aprovada em 2018, durante o governo de Michel Temer (MDB) e o negócio passou quatro anos tranquilo, sem qualquer regulamentação por parte do Congresso ou do governo de Jair Bolsonaro (PL). Somente no governo Lula, o processo teve início.
Primeiramente, o presidente editou uma Medida Provisória, que caducou, mas que levou à discussão de projeto sobre o tema no Congresso, aprovado no final do ano. A partir daí, teve início o processo de regulamentação por parte do governo.
Em agosto, o Ministério da Fazenda definiu um conjunto de regras batizado de “jogo responsável”, que estabelece pontos como a responsabilização das bets por publicidades abusivas ou enganosas realizadas nas redes sociais por influenciadores contratados; a proibição de empresas não autorizadas a fazerem publicidade ou patrocínio esportivo, além de estabelecer regras para prevenir e enfrentar os transtornos do jogo e proteger a saúde mental e financeira dos apostadores.
Recentemente, o senador Omar Aziz (PSD-AM) acionou Procuradoria-Geral da República (PGR), solicitando que os sites de apostas sejam retirados do ar até que as empresas sejam completamente regulamentadas pelo governo federal.
Nesta semana, durante sua viagem a Nova York para participar da Assembleia Geral da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou sobre o tema. “Estamos percebendo no Brasil o endividamento das pessoas mais pobres tentando ganhar dinheiro fazendo aposta. E esse é um problema que nós vamos ter que regular porque, senão, daqui a pouco, vamos ter os cassinos funcionando dentro da cozinha de cada casa”.
Já o presidente em exercício, Geraldo Alckmin, se reuniu nesta semana com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e representantes da Fazenda e da Justiça para tratar da regulamentação. Um dos pontos abordados foi a criação de um grupo de trabalho interministerial que vai se debruçar sobre a compulsão pelos jogos.
Também nesta semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltou a falar sobre a regulamentação dos jogos que está sendo preparada pelo governo. “Toda a regulamentação é voltada para tratar os jogos como se trata cigarro. Tem uma dimensão de entretenimento, mas se você vai botar R$ 10 numa aposta para seu time, isso vai consumir uma parte da renda”, disse.
De acordo com o ministro, entre as regras que deverão ser colocadas em prática estão o controle dos CPFs dos apostadores e a proibição do uso de cartões de crédito. “Vamos ter no ministério da Fazenda um sistema de controle. Você vai impedir a pessoa de apostar com cartão de crédito. Vamos ter, CPF por CPF, quem está apostando, tudo sigiloso. Vamos poder ter um sistema de alerta em relação a pessoas que demonstrem dependência psicológica do jogo”.
Fonte: Vermelho