Depois de ano marcado por dezenas de assassinatos e retomadas, povos originários lutam para que voltem as demarcações
“Não é o mundo que precisa de solução, somos nós que estamos fazendo tudo errado.” Estela Vera, rezadora Ava Guarani do Mato Grosso do Sul, disse certa vez à antropóloga Lauriene Seraguza que o afastamento dos povos indígenas de seus territórios e tradições era sintomático do fim do mundo já em curso.
As suas palavras, assim como o fato de ela ter sido assassinada a tiros por dois homens no último dia 15 de dezembro, sintetizam o cenário de guerra contra os povos indígenas com o qual o ano de 2023 entra. Estela foi morta aos 67 anos e tombou, na frente do filho, no tekoha (território tradicional) Yvy Katu, terra que ela defendia contra o arrendamento.
O ano de 2022, o último do governo Bolsonaro, foi marcado pelo crescimento da violência contra os povos originários. De acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), só no primeiro semestre um terço de todas as vítimas de conflitos por terra foram indígenas.
Mas não só de ataques o ano se fez para os povos originários. Diante da paralisação dos processos demarcatórios, indígenas fizeram suas próprias retomadas de terra em diferentes partes do país.
Além disso, o pleito de 2022 foi aquele em que, de forma inédita, o movimento disputou cargos institucionais de forma coordenada nacionalmente. Pela primeira vez, duas mulheres indígenas e ativistas do movimento – Sonia Guajajara e Célia Xakriabá, ambas do PSOL – foram eleitas deputadas federais.
“Foi um ano de grande resistência”, caracteriza o cacique Mãdy Pataxó, para quem, “com constantes caravanas, mobilizações a Brasília e incidência internacional”, o movimento indígena foi dos que mais lutou “de forma aguerrida contra os retrocessos desse período”.
Brasília
De fato, as idas à capital do país foram várias, com destaque para o Acampamento Terra Livre (ATL), que depois de dois anos voltou ao seu formato presencial. A 18ª edição desta que é a maior mobilização indígena do país reuniu cerca de oito mil pessoas em abril, sob o mote “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”.
Com a vitória presidencial de Lula (PT), a participação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) na equipe de transição e a promessa petista da criação do Ministério dos Povos Indígenas, há expectativa para ver como será, na prática, a recepção das principais instâncias de poder institucional às pautas indígenas em 2023.
“Se nós fazemos parte da base de estruturação para que tenham a oportunidade de governar, então tem que ter diálogo, apoio e construção conjunta”, opina Mãdy, liderança da Aldeia Rio do Kaí, na Terra Indígena (TI) Comexatibá, no sul da Bahia. “Porque governo que não tem diálogo com as bases é um governo frágil, construído na areia e não na rocha”, completa.
Entre as demandas já apresentadas pela Apib ao novo governo, está a demarcação imediata de ao menos 13 TIs, a desintrusão de invasores como garimpeiros e madeireiros de territórios indígenas, a reestruturação da Funai e a desmilitarização dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).
Mãdy Pataxó participou de uma delegação de 120 indígenas que foi a Brasília em setembro e esteve em uma reunião com a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber. “A expectativa é que no início de 2023 o julgamento do marco temporal seja posto em pauta logo”, expõe.
A tese do marco temporal, defendida por ruralistas, diz que povos indígenas só teriam direito à demarcação de terras que estivessem em sua posse em 1988, quando foi promulgada a Constituição.
Com o julgamento paralisado no STF por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, o tema empacou. Uma das principais reivindicações do movimento indígena é que o julgamento (até o momento empatado em um a um), seja retomado e o marco temporal definitivamente derrubado.
Na avaliação de Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, “nunca na história do país a pauta indígena esteve em tanta evidência, associada à pauta climática e ambiental, tão ameaçadas nesses últimos anos”.
Nessa tônica, delegações de indígenas brasileiros estiveram em diversos eventos internacionais em 2022, como a Conferência do Clima (COP27) no Egito, em novembro, a Conferência para a Biodiversidade (COP15) no Canadá e a Revisão Periódica Universal (RPU) na Suíça, todos da ONU. Erileide Domingues, jovem liderança e integrante do Conselho da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, esteve neste último.
“Não é fácil a gente atravessar o mar, ocupar o espaço, chegar e dizer da nossa situação para outros países, ao invés de a gente procurar nosso próprio Estado para ter solução”, relata Erileide.
“Quando caem 10, levantam 50”
“Em 2022 o governo realmente pulverizou seu ódio sobre os povos indígenas, sobre os pobres. Foi tensa a nossa luta. Como Guarani Kaiowá, sempre caem 10, 15, derramam nosso sangue”, descreve. Erileide é moradora da TI Guyraroká, no Mato Grosso do Sul. Entre emboscadas e assassinatos contra lideranças, o estado foi palco do Massacre de Guapo’y no mês de junho em Amambai (MS).
“Mas quando caem 10, levantam 50. A nossa luta nunca parou para a gente descansar”, atesta Erileide. Um dos tantos exemplos do que ela diz aconteceu em maio, quando Alex Lopes, Guarani Kaiowá de 18 anos, foi assassinado com cinco tiros. Em reação imediata, a comunidade se levantou e retomou uma fazenda na cidade de Coronel Sapucaia (MS).
Outra ocupação, esta realizada em outubro em Porto Alegre (RS) por indígenas Kaingang e Xokleng, é a retomada Gãh Ré. A reintegração de posse é iminente, já que no apagar das luzes de 2022 a justiça decidiu pelo despejo em favor da empresa Maisonnave, que quer construir um condomínio na área. Em protesto e garantindo que dali só sai “se for no caixão”, a cacica Gãh Té está em greve de fome desde o último dia 20 de dezembro.
“Sem terra somos peixe fora d’água”
“Tivemos muitos tipos de governos, mas somos esquecidos. A demarcação, entra governo, mas não acontece. Por isso temos que fazer desse jeito para correr atrás dos nossos direitos”, afirma Gãh Té, liderança Kaingang.
“Se eu estiver com vida e aqui com o meu povo em 2023, vou primeiro ver como vai trabalhar e depois dou a resposta”, pontua a anciã em jejum, se referindo ao futuro governo Lula, ao ser questionada sobre a expectativa do acolhimento das reivindicações indígenas a partir do ano que começa.
Em avaliação similar, Erileide espera que “ano que vem o governo tenha ouvidos para acatar as demandas indígenas”, mas acredita que a pressão terá que ser forte. “Nunca algo vai ser entregue de mão beijada”, diz.
“O princípio da nossa luta, e que é o mais árduo, é o território”, ressalta. “Porque sem terra não estamos seguros. Sem terra somos peixe fora d’água”, define. “O marco temporal para nós não existe. Mas em 2023 lutaremos para derrubá-lo e para que os processos de demarcação possam caminhar novamente”, destaca Erileide.
Em depoimento publicado no Instituto Socioambiental, a rezadora Estela Vera conta de “um vento forte” que “levou um pindó [coqueiro] e o deixou em cima de um rio”.
“Eu me comparo com este pindó“, afirmou, alguns anos antes de ser morta: “a qualquer momento Ñandejara [nosso Deus] pode vir e tirar minhas raízes, me levar embora para sempre, sem deixar semente nenhuma”. O ativismo de jovens como Erileide, no entanto, faz pensar que as sementes estão por aí.
“Nós estamos assim, em cima de um rio, e a qualquer momento vamos saber o que vai nos acontecer”, descreveu a rezadora. “Seja como for”, garante Erileide, “seguiremos sempre a luta pelo território, porque lutando por ele, a gente luta pela vida de todos os seres da terra”.
Fonte: Redação Brasil de Fato