Dados do Ministério dos Direitos Humanos indicam 353 ocorrências em 2020 e 966 em 2021. Na região Sul, crimes mais que dobraram no mesmo período
2 de fevereiro é considerado Dia de Iemanjá. Cultuada pelas religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, a divindade é conhecida como “rainha do mar”. Assim, face ao sincretismo que marca o campo religioso brasileiro, ela é associada no catolicismo, à Nossa Senhora dos Navegantes. Juliana de Almeida, licenciada em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisadora das religiões afro-brasileiras, explica que a tentativa de correspondência entre orixás e santos foi caracterizada por opressão, mas importante para que os povos escravizados pudessem manter suas crenças vivas.
A pesquisadora lembra que frequentemente a imagem de Iemanjá é retratada através de uma mulher branca, porém originalmente, trata-se de uma divindade negra. Para ela, o embranquecimento corresponde à uma violência, resultante de racismo, que tenta deslegitimar os saberes e estética de negras e negros, descaracterizando-os a fim de enquadrá-los no padrão eurocentrado.
“As religiões dos povos originários, de matriz africana foram criminalizadas e impedidas de se manifestarem durante até a proclamação da República, quando o Estado passou a garantir, ao menos em tese, a liberdade religiosa. Para sobreviver durante estes períodos de perseguição, as manifestações não hegemônicas passaram por processos de assimilação com as expressões dominantes, eminentemente o catolicismo. Foram movimentos marcados por violências”, afirma a historiadora.
E desde então as opressões não cessaram. Informações disseminadas pelo, então, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos demonstram aumento de 63% nos crimes de intolerância religiosa no país nos últimos dois anos. Em 2020, o Brasil contabilizou 353 casos, sendo que entre as situações em que foi possível identificar a denominação, as religiões de matriz africana foram as vítimas mais frequentes (86 casos), seguida das religiões evangélicas (63 casos), demais religiões (55 casos), católica (34 casos) e sem religião (12 casos).
Já em 2021, foram identificadas 966 ocorrências de intolerância religiosa. Novamente as religiões de matriz africana, embora minoria em número de adeptos, foram o alvo mais recorrente, com 244 denúncias. Na sequência, estão: religiões de matriz evangélica (186 casos), demais religiões (160 casos), católica (125) e sem religião (17 casos).
Os dados foram organizados pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e Observatório das Liberdades Religiosas e integram o II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe. Ainda, conforme destacado pelo documento, entre os casos que foi possível identificar o agressor, a maior parte dos ataques parte de vizinhos (226 casos), seguido de autoridades públicas (185 casos) e lideranças de outras denominações (145 casos).
Paraná
No ano de 2020, o Paraná teve um total de 17 registros de intolerância, distribuídos nas seguintes religiões: não definida em 7 casos, matriz africana 3 casos, matriz evangélica 3 casos, católica 3 casos e budismo 1 caso. Já em 2021 o estado manteve 17 ocorrências, distribuídas nas seguintes religiões: matriz evangélica 7 casos, matriz africana 5 casos, espiritismo 3 casos e não-definidas 2 casos. É importante destacar que, segundo o estudo, a região Sul teve um salto no número de casos, passando de 44 em 2020 para 98 em 2021, ou seja, mais que o dobro.
Como uma das primeiras medidas de seu novo governo, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, em 6 de janeiro, o Dia Nacional das Tradições das Raízes Africanas e Nações do Candomblé. Atualmente, a legislação define como crime a prática, indução ou incitação ao preconceito de religião, bem como de raça, cor ou etnia pela Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997. A pena é de reclusão de dois a cinco anos e multa.
Instituída em dezembro de 2007, pela Lei nº 11.635, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa homenageia a baiana Gildásia dos Santos e Santos, Mãe Gilda, Iyalorixá (mãe de santo) vítima de intolerância religiosa em 1999. Denúncias de crimes de intolerância religiosa, entre outros recortes que firam direitos humanos, podem ser encaminhados pelo Disque 100, canal de acolhimento de queixas, disposto pelo Ministério dos Direitos Humanos.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.