Sou fã de teatro desde sempre. A jacobice esmera e impulsiona a própria vida, redimensionado as limitações do homem nos meandros da equação espaço/tempo, ao tempo em que colore sonhos e metaforiza hipóteses de existir – ‘existir, a que será que se destina’?
Na UEL dos anos oitenta, perseguia os grupos de fingimento de Londrina (Proteu mais de perto) e, sempre que possível, buscava assistir as peças então encenadas. Não raro viajava para ‘teatrar’.
Tenho lembranças memoráveis que emolduram minha relação de profundo amor com o teatro. Posso dizer, na altura, que o homem que sou é um pouco as peças que encenei (enquanto amador de minúsculo talento), assisti e, sobretudo, li.
Shakespeare baby, Shakespeare…
O bardo de todos os bardos deu rumo diverso à minha vida, coletando nos sonhos que performei as possibilidades imaginativas que as esquinas esgrimem nas grandes cidades – manja aquele babado de ‘alguma coisa acontece no meu coração quando cruzo a Ipiranga com a avenida São João’? Então…
Shakespeare foi o catalizador de relações humanas em um mundo gris. Não lhe escapou quase nada. Essa tem sido minha medida desde então, naquilo que a vida demanda observação – que é onde moram as paixões.
Na medida, o teatro me fascina no que compõe enredos que desafiam de física quântica (seja lá o que for isso) à geometria espacial – o que não é pouca coisa em tempos de merda e má poesia – não esquecendo dos ensaios dramáticos, dos enredos passionais, das peças cômicas, suposto que a arte, imitando a vida, encerra o debate em favor da brisa suave que apascenta nossas circunstâncias.
A discussão (?) antivacina, por mais terraplanista que seja, em verdade revela um viés ideológico que chama a razão para a briga, diminuindo nossa capacidade de observar e, de consequência, mitigando a magia de resistir ao ideário monolítico do pensamento único.
Se irá custar muitas vidas, isso não importa aos fascistas, suposto que o efeito colateral está devidamente contabilizado em suas soluções finais que vão se modificando vida afora, sempre negando as demandas sociais que a vida reclama. O que foi feito com os povos originários (Yanomamis) emoldura a falência emocional de um mercado que macera gente para extrair dividendos.
Fato é: fascista não gosta de teatro, música, poesia (sobretudo poesia), na medida em que a arte é a inimiga a ser vencida, a fim de evitar a imaginação derivando para onde os sonhos habitam – o pensamento único não convive com sonhos e a terra do nunca não se revela possível tanger no perpassar as páginas de um livro.
Noves fora a vida como ela está, há tempos busco o cara que fui. Na procura projeto o tipo que posso ser. Pelo caminho vejo aflorar o entendimento de que gente ‘nasceu para brilhar’ e ser mais – que a vida é uma viagem de ida…
Bem por isso o lugar no mundo que eu mais festejo é o boteco. Sou fã de botecos mundo afora.
Deveras, estou em São Paulo onde, em meu boteco favorito, encontro uma amiga querida de meus dias de glória (e copo). Encontrados, abraçamos no chopp o tempo de desencontro (mais de trinta anos) e desandamos a teatralizar o que vivemos em tempo de ausência…
Lembrou, minha amiga, que nunca antes pensamos debater medidas e contrapesos terraplanos, eis que sempre nos pareceu maior e infinitamente mais prazeroso jogar conversa à fio, discutindo futebol, arte, poesia – que não eram senão palcos de encenação da peça de nossas vidas.
Muito chopp depois, ela lembrou Auto da Compadecida (Ariano Suassuna) e eu memorei Miss Saygon, o musical de Schönberg e Alain Boublil, peça que reivindica a temática clássica da mulher asiática abandonada por seu amante ocidental (americano) – uma Madame Butterfly (de Puccini) contemporânea, que buscou humanizar a tragédia que foi a guerra que tio sam travou (e perdeu) no e para o Vietnã.
Gostava mais de ter lembrado de Suassuna e seu João Grilo (que Matheus Nachtergaele ressuscitou na mais extraordinária das performances a que pude assistir), suposto que ao trazer a literatura de cordel para seu livro, Suassuna abraçou o folclore nordestino e beijou a face do possível em nosso cotidiano.
Quando li Auto da Compadecida lá pelo início dos anos oitenta, na biblioteca da UEL – onde eu me escondia das demandas do cotidiano –, a vida se me revelou o mais profundo dos segredos: ‘peça à mãe que o filho escuta’.
Logo eu, devoto de Maria (a quem minha santa Mãe me consagrou, logo após eu não morrer aos seis anos, vitimado por um choque anafilático do qual me salvou o grande esculápio Paulo Conrado, na Fernudia dos anos setenta), confiei que bastava pedir-lhe para que seu filho famoso escutasse.
Segui pela vida pedindo à Mãe, na esperança do filho escutar. Na altura, meio que me apartei de mim enquanto buscava o dia a ser vivido, naquilo que a vivencia do momento negava a convicção do que não via, ao tempo em que apostolava as hipóteses de fantasia e obnubilava, no dia presente, o presente da vida.
Por mais que eu pedisse (e pedi) pela luz da empatia, sigo sem entender a morte das crianças Yanomamis – a Sua também, Renatinho…
Noves fora a dor de minha incompreensão, rever minha amiga dos anos oitenta foi meio que avistar a Wilma Flintstone colocando o dinossauro para fora da caverna. Não o grande lagarto que habitava nosso desespero e sim o dinossauro que viveu e morreu na terra – suposto que os assuntos que dormitavam ainda se revelaram engajados o suficiente.
Seguimos ativistas e isso foi muito legal de vivenciar, eis que a brasa mal dormida de nossas vidas ainda pulsava considerável lume. Que bom ter história e marcar encontro com o passado. A memória, ativando desejo e medo finca suas vestes no comportamento humano e aponta no outro o que há de melhor na gente. Viver não seria tão extraordinário enquanto ato solitário de matriz biológica. Seria como uma punheta em lugar de uma cópula frenética que sobressalta nos desencontros os nossos anseios.
Falamos (minha amiga e eu) de temas recorrentes aos quais não recorríamos há muito tempo. Soube de sua saúde fragilizada em meio a um tratamento severo e, ao que aparenta, vencedor de um câncer. De minha parte, reclamei da micção exagerada que a próstata crescida viabiliza. Ela sorriu como quem afaga o desconhecido.
Rimos e choramos por diversas contingencias. Concordamos em discordar e discordamos em concordar. Foi como sempre tivera sido nos anos 80. Falamos, ouvimos, lembramos. Vivemos. E os trinta anos de ausência? Estes ficaram em seu devido lugar: no passado, naquilo que o encontro sepultou o desencontro – como deve ser sempre, abrindo um capítulo novo na história de nós dois.
Lá pelas 23:00 minha amiga voltou para casa, logo após nos despedirmos com um afetuoso abraço e (ela) tomar sua saideira. Foi bom, muito bom, rever meu passado de razão e fantasia, em meio à avalanche distópica que me bate à porta todos os dias, desde que, em 2013, os veículos familiares do neoliberalismo (frias + mesquita + marinho + civita) venderam ao mercado uma narrativa que colmatava o movimento pelo passe livre em levante popular contra o governo Dilma.
Ladeira abaixo estamos perdendo a razão aos poucos e, nos espaços que se apresentam, feito a parasita da história, a distopia captura vontades menos libertas, arregimentando seu exército de ignaros.
Foi um dia repleto de lembranças e eu, em plena madrugada, as reconheço, agradeço, beijo e as registro (aqui), para que não se percam em minhas ausências e anseios.
Tristes trópicos, onde o passado vem sendo apagado, a histórica reescrita e a verdade negociada em narrativas de interesses neoliberais. Saudade Pai. Você ensinou amar e amando sigo pela vida a lembrar o muito que a vida me deu!
João dos Santos Gomes Filho
Para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.