Entre 24 e 28 de abril, Acampamento Terra Livre em Brasília reúne milhares e cobra a volta da política demarcatória
“Queremos propor o futuro. E o futuro está na demarcação das terras indígenas”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Não estamos pedindo nada extra ou fora da lei. Queremos que o governo cumpra com sua obrigação constitucional, e nós vamos manter essa parceria e diálogo”, completa, expressando o eixo central da maior mobilização indígena do país, que começa nesta segunda-feira (24) em Brasília (DF).
A expectativa é que, ao longo dos seus quatro dias de atividades, o Acampamento Terra Livre (ATL) reúna cerca de seis mil indígenas de todas as partes do país, falantes de 274 idiomas. O retorno da política demarcatória, depois dos quatro anos em que ela ficou parada sob a gestão Bolsonaro (PL), a reconstrução da política indigenista e o combate às violências sofridas pelos povos indígenas devem ser os principais temas de debates e reivindicações.
A demanda mais imediata é a regulamentação de 14 Terras Indígenas (TIs) apresentadas ao governo federal como tendo seus processos demarcatórios já em fase final, faltando só a homologação. A promessa de campanha de que elas seriam demarcadas até os 100 primeiros dias de governo não se cumpriu. “Estamos ansiosos para que a política volte a funcionar”, diz Dinamam.
Considerando importante a abertura do governo Lula (PT) para que espaços institucionais sejam ocupados por indígenas (tendo a criação do Ministério dos Povos Indígenas como a maior expressão disso), Dinamam enfatiza que governo e movimento são coisas distintas. “Nós vamos cumprir nosso papel de controle social”, garante.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o coordenador da Apib fala da expectativa com o ATL em um momento de, por um lado, avanço das lutas por autodemarcação e defesa de território e, por outro, reflexos a isso com movimentações do agro e um discurso colonialista e de ódio inserido na população brasileira. Confira:
Brasil de Fato: Qual a expectativa para o Acampamento Terra Livre este ano?
Dinamam Tuxá: O Acampamento Terra Livre já atingiu sua maioridade, estamos na 19ª edição. É um espaço de muita diversidade e ampla discussão. Como todos os povos indígenas no Brasil têm ciência desse espaço, estão cada vez mais se articulando para chegar a Brasília. Estamos com uma estimativa de cinco a seis mil lideranças indígenas.
Neste ano, trazemos como principal pauta a retomada do processo de demarcação das terras indígenas. Sem esquecer de todo o cenário de violência que nós vivenciamos nos últimos anos. Então vamos trazer o debate acerca do desmonte que houve na política indigenista, das violências, mas também com um olhar para o futuro. Queremos não só falar do passado, mas também propor o futuro, e o futuro está justamente nas demarcações das terras indígenas.
O movimento indígena apresentou ao governo Lula uma lista de 14 Terras Indígenas (TIs) que estão com o processo demarcatório na fase final, faltando só a homologação. Existia, inclusive, uma expectativa de que o governo anunciasse a demarcação dessas 14 TIs no marco dos 100 dias de governo, mas isso não aconteceu. Ao mesmo tempo, a gente vê setores do agro se movimentando, inclusive para tirar a demarcação de terras da alçada do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. O Partido Progressistas (PP), por exemplo, entrou com uma ação com esse teor no STF. Como está, nesse momento, a luta pela demarcação de terras?
Primeiramente, essas 14 TIs não são prioridade escolhidas pelo movimento. Houve uma busca dos processos paralisados de demarcação e, entre eles, encontramos 14 terras aptas a serem demarcadas: só não foram porque os governos anteriores não cumpriram com essa obrigação. Não há qualquer impeditivo jurídico ou administrativo para que sejam demarcadas. Isso foi logo encaminhado para o Ministério dos Povos Indígenas e, em seguida, para a Casa Civil.
De fato, houve a expectativa de que, nos primeiros 100 dias, a demarcação ocorresse, porque foi uma promessa de campanha. Houve certa comoção entre os povos indígenas e as consequências disso, evidentemente, é que estamos ansiosos para que a política volte a funcionar. Para que de fato as demarcações aconteçam. A priori, nessas 14 terras e, logo em seguida, que se dê prosseguimento às mais de mil terras que estão aguardando esse desfecho. O território do meu povo também está nesse pacote, aguardando esse desfecho.
Existe uma grande mobilização de forças contrárias às lutas indígenas, sabemos disso. Há correlações de forças que foram montadas para eleger o presidente Lula. Estamos cientes que houve uma pactuação com o agronegócio para o Lula ser eleito. Também com empresas que investem, que tem relação com grandes empreendimentos, com a indústria madeireira. Ele teve que fazer uma frente ampla e os povos indígenas também fazem parte desse acordo para retomarmos nossa democracia.
Estamos cientes de que será um governo progressista, que o governo Lula abriu um diálogo e abriu um espaço jamais imaginado por nós: o Ministério dos Povos Indígenas. Que deu a oportunidade de indígenas presidirem a Funai, coordenarem a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], entre outros espaços. Nós ocupamos esse espaço da institucionalidade, e quando digo “nós”, me refiro aos povos indígenas. Sabemos muito claramente que há uma distinção entre governo e movimento. Temos indígenas que saíram do movimento e ocuparam cargos institucionais, mas não há uma unidade entre governo e movimento: são coisas distintas.
Nós vamos cumprir nosso papel de controle social, cobrando quando for necessário, de forma responsável e justa. Não estamos pedindo nada extra ou fora da lei. Queremos que o governo cumpra o que está dentro da lei, e nós vamos manter essa parceria e diálogo.
Uma característica do movimento indígena que inspira outros movimentos populares, é a de colocar suas demandas, mas também não ficar esperando. Organizando, por exemplo, retomadas e organizações autônomas de defesa de território. Vem sofrendo, no entanto, muita violência por conta disso. Além de sistemáticos assassinatos, vimos recentemente, por exemplo, nove indígenas Guarani Kaiowá presos depois de fazer uma retomada contra a construção de um condomínio de luxo dentro de sua terra ancestral. Como o ATL pode contribuir para o combate a essa violência e o fortalecimento das iniciativas de defesa de território?
Vivemos um reflexo do desmonte da política indigenista e do discurso de ódio que foi inserido na população brasileira. Mas os povos indígenas nunca pararam de lutar pelos seus territórios.
Nós chamamos de autodemarcação. Poucas pessoas conhecem essa história, esse processo de luta territorial começa na década de 1970 no Nordeste, com o povo Potiguara. Foi quando foi registrada a primeira retomada, depois declarada como autodemarcação. E esse processo de luta acaba se expandindo, saindo da Paraíba, descendo pelo Nordeste e vai para o Centro Oeste e cai no Sul. Assim que foi o círculo, e depois vai para a região Amazônica, que foi uma das últimas que iniciaram esse processo de autodemarcação.
Então, temos aqui uma luta pelos territórios, pela implementação dos direitos constitucionais. Que ninguém está pedindo favor, né? Ninguém está fazendo luta aleatória. Se nós estamos retomando, se nós estamos autodemarcando, é porque tem um princípio, tem uma lógica e tem um conceito. É, principalmente, uma relação de vida. Ou nós fazemos esse processo, ou estamos sujeitos à extinção. Se o Estado brasileiro não cumpre com sua função constitucional, os povos indígenas vão cumprir.
Essa disputa territorial gera diversos reflexos e um deles é a criminalização. Recentemente, nós vimos aí, como você citou, os nove indígenas presos. Inclusive com abuso do poder de polícia, que foi objeto de uma ação que a Apib moveu recentemente. Hoje nós temos uma articulação muito forte, que consegue denunciar e interceder. Mas temos um problema sistêmico com os Guarani Kaiowá porque o Estado brasileiro não cumpre com sua função constitucional de demarcar. Nos últimos anos, isso foi se acirrando.
Não só lá. Vemos situações como a morte de lideranças e jovens Pataxó no Sul da Bahia, Guajajara no Maranhão. A situação das invasões de madeireiros e garimpeiros nas terras Yanomami, Kaiapó, Munduruku.
Todo esse cenário foi construído com base em um discurso de ódio e um princípio colonizador que quer que os povos indígenas sejam inseridos em uma comunhão nacional, discurso este que foi usado durante a ditadura militar e que agora tentam ressuscitar. São muitos fatores que enfrentamos nos últimos anos, mas nunca deixamos de ocupar o nosso território.
E essa temática está na programação do nosso acampamento. Na verdade, as comunidades indígenas em conselho vêm com a necessidade, vêm com a demanda suprida de políticas públicas. Mas todas elas vêm com problemáticas relacionadas ao território, seja a demarcação, seja a fiscalização, seja a proteção ou o desenvolvimento sustentável.
O ATL é a maior mobilização da América Latina e uma das maiores do mundo. Nos encontraremos entre 160 a 180 povos diferentes, seis mil pessoas, 274 idiomas. O ATL desse ano não vai só debater a reconstrução do Brasil, mas trazer para a evidência que a pauta dos povos indígenas deve estar em todas as instâncias de governo.
Fonte: Brasil de Fato