Para pesquisador, racismo e xenofobia impactam na violência, cujas vítimas são, em sua maioria, pessoas não brancas
Segundo dados publicados pelo Ministério do Trabalho, nos três primeiros meses de 2023: 918 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados no país. O número indica aumento de 124% em relação ao mesmo período de 2022. Também representa um recorde para um primeiro trimestre nos últimos 15 anos, sendo superado apenas pelo levantamento de 2008, quando 1.456 pessoas foram encontradas.
De acordo com o advogado, professor, doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Luiz Augusto Silva Ventura do Nascimento, a precarização da passagem do trabalho escravo para o livre no Brasil, tem entre seus reflexos na naturalização da exploração, negligenciando direitos dos trabalhadores, que cada vez mais são submetidos a jornadas extenuantes e em situação de vulnerabilidade, visto o aumento de contratações terceirizadas e informais.
“Veja que o estado democrático de direito brasileiro mostra-se ineficaz para garantir os direitos fundamentais à população trabalhadora. Assim sendo, há um ambiente favorável para a exploração da mão de obra de grupos subalternos. Pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica são arregimentadas e, muitas vezes, coagidas a trabalharem de modo semelhante à escravidão, em condições degradantes e exploradoras, frequentemente, sem remuneração e sem a possibilidade de deixar o posto de trabalho”, observa.
Para o pesquisador, portanto, a condição do trabalho análogo à escravidão é um fenômeno social que sempre esteve presente na sociedade brasileira. Ele destaca que, a partir da década de 1970, entidades como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) passaram a denunciar a violência, inclusive, em âmbito internacional, o que forçou o estado brasileiro a tomar medidas de fiscalização e combate, a exemplo do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho em 1995. O órgão tornou-se o principal agente responsável pelo registro dos casos descobertos a partir das denúncias no país.
“Entretanto, para serem bem-sucedidas as operações e terem mais casos descobertos, são necessários investimentos por parte do estado nacional. Os auditores e fiscais do Ministério do Trabalho precisam de recursos humanos (constância de concursos públicos para suprir aposentadorias) e materiais para realizarem as operações (condições materiais: carros, gasolina, trabalho realizado em força tarefa com suporte da Polícia Federal e, em alguns casos, da Polícia Rodoviária Federal”, observa Nascimento.
Cidades também registram trabalho escravo
O docente ressalta que a escravização contemporânea é um processo muito complexo e multifacetado. Alguns setores têm apresentado maior número de casos nos últimos anos, são eles: agricultura, pecuária, indústria têxtil e do vestuário, mineração, carvoaria, construção civil e serviços domésticos. Ainda, segundo Nascimento, o trabalho escravo contemporâneo pode ocorrer em centros urbanos e zonas rurais.
Em 2022, foram registrados 207 casos de trabalho análogo à escravidão no campo, com 2.615 pessoas denunciadas e 2.218 resgatadas. O meio rural corresponde a 88% das denúncias deste tipo de violência no país. O agronegócio segue como a atividade mais responsável pelo crime no Brasil, sendo a liderança ocupada pelo setor sucroalcooleiro, com 523 pessoas resgatadas. Os dados são do relatório divulgado pela Comissão Pastoral da Terra no último dia 17 de abril.
Mas, ele aponta que quando acontece nas cidades, tende a gerar menor comoção, pois no imaginário social, estes espaços estão mais relacionados ao desenvolvimento econômico, progresso e, assim, estariam distantes desta forma de opressão. Mas a realidade mostra que este entendimento não se sustenta no cotidiano.
Em março, o Ministério Público de São Paulo encaminhou notícia-crime para apurar prática de trabalho análogo à escravidão no festival Lollapalooza 2023. Segundo o documento, cinco trabalhadores atuavam como carregadores por 12 horas e dormiam no chão ou sobre pallets de bebidas, sem energia elétrica. Durante a noite, eram obrigados a dormir no autódromo de Interlagos para fazer a vigilância das cargas. Sem contrato intermitente válido, os funcionários estavam informais e tinham a promessa de receber R$ 130 por dia.
“O desconhecimento e a desinformação fazem com que os escravizados urbanos não sejam vistos como trabalhadores em condição análoga à de escravidão, quando são. Acho importante dizer que, além da condição degradante e jornada exaustiva, há direitos trabalhistas violados como o não recebimento das horas extras e do vale transporte, a não fruição do descanso legal e o desconto do valor do exame admissional”, pontua.
Racismo e xenofobia
De acordo com Nascimento, embora a população negra devido às condições de vulnerabilidade econômica seja mais afetada pela violência, a submissão ao trabalho análogo à escravidão não ocorre exclusivamente contra este segmento da sociedade.
“A OIT [Organização Internacional do Trabalho] publicou um estudo em 2011, com dados coletados, entre outubro de 2006 e julho de 2007, mostrando que 81% dos trabalhadores submetidos ao trabalho análogo ao de escravo eram não-brancos: 18,2% dos quais autodenominavam-se pretos, 62% pardos e 0,8 indígena. A porcentagem de pretos (18,2%) foi 2,5 vezes superior à da dimensão presente na população brasileira (6,9%), algo próximo ao índice do estado da Bahia onde a parcela de pretos é a maior do país (15,7%)”, explica.
Contudo, para o professor, no Brasil, o trabalho escravo contemporâneo está, primeiramente, associado ao desenvolvimento do sistema capitalista, a forma de acumulação do capital assentada na exploração irrestrita da força de trabalho para obtenção do lucro.
“Mas isso não significa dizer que o racismo e a xenofobia não influenciam, porque já foi comprovado cientificamente que o racismo é estrutural, ou seja, está incorporado, é frequentemente naturalizado, em diversas práticas sociais, entre elas a escravidão contemporânea: exploração de trabalhadores e trabalhadoras regularmente concebidos como “inferiores” ou “diferentes”. Logo, são discriminados, sofrem abusos físicos e psicológicos devido à cor da pele e origem (xenofobia)”, adverte.
Ainda, Nascimento reforça que o aliciamento da mão de obra em regiões distantes é frequentemente empregado para deixar a vítima ainda mais vulnerável a partir do distanciamento da família e amigos. “Em localidades distantes, populações em condição de miséria e extrema pobreza podem ser agredidas, violentadas e hostilizadas, tem-se indivíduos de determinadas regiões sofrendo discriminação em razão de sua cultura ou origem geográfica”, assinala.
Canais de denúncia
O procurador-geral da República, Augusto Aras, ajuizou no início deste mês, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação para garantir que o crime de trabalho análogo à escravidão não prescreva. Também nos primeiros dias de abril, o Ministério do Trabalho divulga edição mais recente da lista de trabalho análogo à escravidão. O levantamento incluiu 132 empregadores e excluiu outros 17, entre pessoas físicas e jurídicas. Os casos acrescentados à lista são dos períodos de 2018 a 2022.
Na relação atualizada, constam 289 nomes, envolvidos em processos encerrados, isto é, em que não cabem mais recursos para as partes. Saiba mais sobre o que diz a legislação brasileira, quais são os canais de denúncias e penalidades aqui.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.