No Brasil, um LGBT foi vitimado a cada 32 horas no último ano
Em todo o mundo, junho é considerado o Mês do Orgulho LGBTQIA+. A data rememora lutas como a conhecida “revolta de Stonewall”. Isto porque, na noite de 28 de junho de 1969, policiais protagonizaram uma abordagem violenta no bar Stonewall, espaço historicamente frequentado pela comunidade LGBTQIA+, mulheres, negros, entre outros grupos subalternizados nos Estados Unidos. Em resposta à repressão, as ruas de Nova York foram tomadas denunciando abusos de autoridade e demais preconceitos sofridos pelo coletivo.
O levante também deu origem a primeira marcha do Orgulho Gay, realizada em 1970. Porém, é importante lembrar que no mesmo período, em outros países, a exemplo do México, Argentina e Brasil, também foram organizadas manifestações em prol dos direitos da população LGBTQIA+.
Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), no livro “História do Movimento LGBT no Brasil”, publicado em 2018, recupera as especificidades das articulações em território nacional, visto que sob a vigência da ditadura civil-militar (1964-1985), as denúncias de violações e conquistas de direitos tornavam-se ainda mais difíceis. Mas elas existiriam e a população LGBTQIA+ constituiu segmento imprescindível, inclusive, para a supressão dos anos de chumbo e redemocratização da sociedade brasileira.
Dossiê intitulado “Mortes e Violências contra LGBTI+” demonstra que em 2022, 273 pessoas LGBTI+ morreram de forma violenta no Brasil, sendo 228 assassinatos, 30 suicídios e 15 óbitos por outras causas. Isto quer dizer que, um LGBT foi vitimado a cada 32 horas no último ano.
O mapeamento foi realizado pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ com base em notícias de jornais e postagens nas redes sociais. A iniciativa surgiu em 2020, e atualmente, é composta por três entidades, a saber: Acontece Arte e Política LGBTI, Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).
O índice representa uma pequena redução em comparação a 2021, quando o país registrou 316 crimes de ódio. Porém, os pesquisadores alertam para a subnotificação dos números, visto a dificuldade de levantar os dados. “Como dependemos do reconhecimento da identidade de gênero e orientação sexual das vítimas por parte dos veículos de comunicação que reportam as mortes, é possível que muitos casos de violências praticadas contra pessoas LGBTI+ sejam omitidos”, ressalta o documento.
Perfil das vítimas
Em 2022, dois grupos foram os mais violentados no país: população de travestis e mulheres trans, com 58% dos casos (159 mortes); e homens gays, representando 35% do total (96 mortes). A idade das vítimas variou de 13 a 75 anos. A maioria das mortes ocorreu entre jovens que possuíam entre 20 e 29 anos: 91 casos, totalizando 33%.
Dos 273 casos registrados no período, foi possível identificar o pertencimento étnico-racial de 187 vítimas, ou seja, 68%. Não houve diferença significativa entre brancos e negros, sendo que 94 crimes (34%) foram cometidos contra pessoas brancas. Já contra negros foram notificados 91 ataques (33%). Contra Indígenas, ocorreram dois casos (0,73%).
Entretanto, se considerarmos os marcadores de identidade de gênero, orientação sexual e raça, evidenciamos que entre homens gays, a maior parte das vítimas são brancas (42) em relação a negras (27). Já entre as travestis e mulheres transexuais, houve maior número de mortes de pessoas negras (58) que de pessoas brancas (46).
Causa das mortes
Conforme ressaltado pelos coletivos em defesa dos direitos da população LGBTI+, os crimes contra a comunidade, na maioria das vezes, são caracterizados por requintes de crueldade. O estudo detectou 35 diferentes causa mortis de LGBT no Brasil em 2022. As duas mais frequentes foram: armas de fogo, com a morte de 74 pessoas (27%), e esfaqueamento, com 48 mortes (17%). Em seguida, foram registrados 15 óbitos por espancamento (5%), 10 mortes por apedrejamento (3%), nove assassinatos por objetos perfurocortantes (3%) e oito por estrangulamento (2%). Não foi possível identificar o motivo de 43 casos (15%).
Quanto aos locais dos crimes, a investigação constata que 136 casos ocorreram em espaços públicos, o que corresponde a 49% do total. Apesar da predominância de violências em ambientes públicos, os espaços privados tampouco podem ser considerados seguros para essa população, haja vista que 102 mortes (37%) ocorreram em locais privados, como a casa das vítimas, onde foram contabilizadas 67 mortes violentas.
Lideranças
O ano de 2022 registrou um aumento de 155% nos casos de assassinatos de defensores de direitos humanos de LGBTI+ no Brasil: 23 assassinatos foram registrados, 14 a mais que em 2021, que teve nove registros no total. A advogada Isabella Motta avalia que o aumento da violência está relacionado a disseminação de uma agenda antigênero, encampada por governos de extrema-direita.
“Desde 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, percebemos que as pautas dos movimentos feministas, LGBT foram amplamente rejeitadas e deturpadas. A criminalização da educação sexual nas escolas, por exemplo, denominada de ‘ideologia de gênero’ por setores conservadores dificulta muito a desconstrução de preconceitos e intolerâncias. Os pânicos morais motivados pelo discurso de que estas pessoas colocariam ‘a família tradicional’ em perigo tornam-se instrumentos para arrecadar votos, enquanto LGBTQIA+ continuam sendo violentados e morrendo todos os dias”, adverte.
Regiões mais violentas
Os estados que apresentaram maior número de assassinatos no período foram: Ceará (34), São Paulo (28), Pernambuco (19), Minas Gerais (18) e Rio de Janeiro (16). Com menor quantidade de ocorrências, ficaram Rondônia (2), Amapá e Roraima, com um óbito cada. Acre e Tocantins foram as únicas unidades da federação que não apresentaram registro de mortes violentas de LGBTI+ em 2022.
O Paraná registrou 10 assassinatos de LGBTI+ em 2022, sendo: três mortes em Curitiba, duas em Guarapuava e duas em Londrina. Maringá, Pinhais e Sarandi contabilizaram uma morte cada. A taxa é a maior da região da Sul, visto que Santa Catarina contabilizou cinco crimes de ódio e Rio Grande do Sul, quatro óbitos motivados por violência contra esta parcela da população. Acompanhe o relatório completo aqui.
Homofobia configura crime no Brasil. A pena pode variar entre um a cinco anos além da aplicação de multa.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.