A tela acima, “O médico”, de Samuel Luke Fildes é a tela mais reproduzida em consultórios médicos mundo afora.
O lar de um trabalhador pobre, com mobiliário precário, a mãe desconsolada, debruçada sobre a mesa e o pai a observar o médico. A família vive numa espécie de porão, com o teto baixo, sombrio. O médico olha compassivamente a criança desfalecida, mas ao mesmo tempo transparece a sensação de impotência em oferecer ao paciente qualquer alternativa de cura.
A dramaticidade aumenta quando percebemos o desconsolo em saber que pouco há de fazer por ela. Se acreditamos que a pintura é poesia para os olhos, estamos diante de um belo e triste poema.
A atualidade da cena, no entanto, nos faz refletir que apesar do século que nos distancia desse tema (a Revolução Industrial inglesa), há muito que conquistar. Apesar dos avanços, ainda hoje existe um número inaceitável de pessoas cujo acesso à saúde é tão precário como o da Inglaterra do fim do século XIX.
Fildes, o autor, antes de se dedicar exclusivamente à pintura foi ilustrador importante de vários periódicos contestadores da sociedade inglesa da época. Ele vinha de uma família com atuação política. Neto de uma militante socialista, desde cedo sensibilizou-se com as lutas sociais. Ele cresceu na Londres dos trabalhadores miseráveis, que viviam os trágicos efeitos da industrialização.
Fome, miséria, exploração do trabalho infantil, crianças trabalhando mais de doze horas por dia em fábricas imundas. E essa tela, resume e impacta à primeira vista o mundo em que ele vivia. A intensidade emocional da imagem ajudava na conscientização política. O grande escritor Charles Dickens, que descreveu como poucos esse mundo de tristezas, estava entre os admiradores de Fildes.
Já no século XX, após o término da Segunda Guerra, a onda democrática que cresceu com a derrota do nazifascismo, criou as condições de entender que saúde é um direito fundamental das pessoas e não dependente de atos caritativos.
Embora gestos de solidariedade (como o do médico retratado) sejam bem vindos. Não é sem motivo que o sistema de saúde inglês, implantado no pós guerra, o National Health Service (NHS), buscou de alguma maneira o resgate e o ressarcimento histórico aos trabalhadores ingleses.
E foi um modelo importante na concepção e execução do nosso SUS. O SUS, tantas vezes criticado mostrou sua importância e robustez na última pandemia. Apesar dos ataques que sofreu e sofre ele se mostra cada vez mais um sistema indispensável à saúde do país.
As raízes de uma sociedade justa muitas vezes estão mergulhadas em pântanos e é de lá que brotam transformações em corações e mentes. Mas, como vimos no Brasil recente, se descuidamos, a volta para o pântano é rápida.
Texto: Dr. Marco Antônio Fabiani, cardiologista