As acusações em série de assédio sexual contra integrantes das Forças Armadas atingiram oficiais superiores da FAB (Força Aérea Brasileira): dois coronéis e dois tenentes-coronéis, citados por militares mulheres em episódios de constrangimento no ambiente de trabalho.
A reportagem identificou 17 ações ou inquéritos abertos contra oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica, elite militar formada para comandar tropas.
Entre eles está também um tenente do Exército que integra atualmente a Guarda Presidencial e um capitão da Marinha que chegou a ser acusado por seis militares.
A matéria obteve informações de parte dos processos que, por regra, correm sob sigilo, praxe em casos de crimes sexuais. As defesas que responderam aos questionamentos não comentaram as acusações sob a justificativa de que os casos correm em segredo de Justiça.
Em notas, a FAB, o Exército e a Marinha, cujo efetivo ultrapassa 360 mil militares, afirmaram repudiar os desvios de conduta e declararam investigar e punir os responsáveis.
Dados do STM (Superior Tribunal Militar) mostram que, desde 2017, foram concluídos 88 inquéritos policiais militares sobre assédio e importunação sexual. A Folha identificou a patente de 40, sendo 17 oficiais (sendo 2 coronéis, 2 tenentes-coronéis, 6 capitães e 7 tenentes) e 23 praças.
Uma ação penal ainda em curso envolve o coronel José Arnaldo do Nascimento, atualmente na reserva remunerada da FAB. Ele pediu a aposentadoria cerca de três semanas após ser alvo de registro de ocorrência na polícia.
O coronel foi denunciado pelo Ministério Público Militar sob acusação de assédio sexual contra seis oficiais mulheres que relataram “abraços inconvenientes, apertos de mãos diferenciados e ‘pegajosos’, toques no queixo, nos braços e nos seios, com a desculpa de ‘ajeitar’ a tarjeta de identificação”.
Procurada, a defesa de Arnaldo disse à reportagem que só se manifestará nos autos do processo.
Os casos citados se referem ao período entre 2017 e 2018 em Brasília, quando o coronel chefiou o GAP-DF (Grupamento de Apoio ao Distrito Federal), unidade que concentra as licitações e distribuição de material para as organizações militares da capital federal e seu entorno.
As principais denúncias foram feitas por uma tenente temporária, que relatou constantes abordagens constrangedoras do coronel. Os comentários e toques, segundo o relato da militar, se tornaram mais acintosos durante uma carona solicitada pelo oficial. Ele teria acariciado a coxa dela próximo à virilha de forma prolongada.
As demais denunciantes também afirmaram terem sido alvo de comentários invasivos e toques indesejados atribuídos ao coronel.
Uma major afirmou que passou a cumprimentar o oficial apertando sua mão com força para evitar qualquer movimento indesejado.
Numa solenidade, ela disse que reagiu de forma bastante ostensiva, movimentando o braço bruscamente para trás, quando o coronel a acariciou no braço. Em seu depoimento, ela afirmou ter percebido que a mão do coronel se aproximava de seu seio.
A denúncia contra o coronel, apresentada em janeiro de 2021, chegou a ser rejeitada pelo juiz Alexandre Quintas, de Brasília.
Ele entendeu que as acusações não apresentavam “menção a ameaças, tácitas ou implícitas” e que elas se encaixariam no crime de importunação sexual, mas o tipo penal só passou a existir em setembro de 2018, posterior às datas dos fatos.
O STM (Superior Tribunal Militar), porém, reverteu a decisão e determinou a abertura da ação penal, por considerar que a legislação não exige a prática de ameaça para configurar o assédio sexual. O processo foi instaurado neste ano e está em curso.
Outro coronel também foi denunciado sob acusação de assédio e importunação sexual no período em que atuou em uma unidade no Rio de Janeiro.
O inquérito foi aberto a partir de uma denúncia anônima que relatava os comentários feitos pelo oficial sobre o corpo de uma tenente. Chamada a prestar depoimento, a militar confirmou o relato.
Ela disse que, numa oportunidade, o coronel a segurou pelo antebraço para dar dois beijos no rosto como cumprimento, mas, ao se aproximar, tentou beijar sua boca. “Fiquei sem reação, atônita”, disse ela no depoimento.
O oficial da FAB, ainda na ativa, chegou a ser denunciado em 2022, mas a acusação não foi recebida. Os fatos caracterizados como assédio sexual haviam ocorrido em 2017, tendo prescrito (prazo para apresentação de denúncia) em 2021. A acusação por importunação sexual também não foi acolhida porque o crime só foi tipificado em setembro de 2018, após a tentativa de beijo relatada.
A FAB tem ainda um tenente-coronel com investigação sob sigilo. Outro, de mesma patente, foi absolvido em 2021 na Justiça Militar. Contudo, de acordo com a denúncia do Ministério Público Militar, ele foi punido disciplinarmente por fato semelhante, ao ficar nu em frente à nutricionista sem que a profissional tivesse solicitado.
Na Marinha, o capitão Ruy Wirtz Moreira de Barros foi acusado de abusos durante consultas médicas. Foram seis denunciantes, que relataram terem sido vítimas de comentários de cunho sexual e toques nos seios durante o atendimento.
No Exército, o tenente Marcos César Marques, atualmente na Guarda Presidencial, responde a ação penal por fatos supostamente ocorridos no período em que serviu em Santa Maria (RS). Ele foi acusado de fazer repetidas cantadas invasivas a sós para duas sargentos. Uma delas relatou ter colocado uma cama na porta do alojamento por temer uma possível invasão de seu quarto após as investidas do oficial.
A denúncia do Ministério Público Militar afirma que, em depoimento durante a investigação, o tenente não negou os fatos, mas disse que não os considera uma conduta criminosa.
Defesas alegam segredo de Justiça para não se pronunciar
A defesa do coronel José Arnaldo do Nascimento afirmou que só se pronunciaria por meio dos autos do processo, em razão do segredo de Justiça. O militar também foi procurado diretamente por meio de seu telefone, mas não respondeu às mensagens nem atendeu às chamadas da reportagem.
O coronel cuja denúncia foi arquivada afirmou que o caso foi encerrado porque a investigação não comprovou a existência de eventos criminosos. A informação é contrária à dada oficialmente pelo Ministério Público Militar, que afirma ter ocorrido o oferecimento da denúncia, recusada em razão dos prazos processuais.
Os advogados do capitão da Marinha e do tenente da Guarda Presidencial afirmaram que não se pronunciariam em razão do segredo de Justiça.
A FAB disse em nota que “todas as denúncias de assédio envolvendo militares de seu efetivo são investigadas com as devidas providências para apuração dos fatos”. A Aeronáutica disse também que está implementando programa de conscientização específico para combate ao assédio sexual, com base em determinação de lei sancionada em abril.
O Exército declarou, em comunicado, que “não compactua com qualquer tipo de irregularidade eventualmente praticada por seus integrantes, repudiando veementemente quaisquer atos que desabonem a ética e a moral, as quais devem nortear a conduta de todo militar”.
A Marinha afirmou que “atua na prevenção e no combate a condutas atentatórias contra a pessoa e à discriminação por razão de sexo”. A Força mencionou a portaria nº 244/MB/2020, “que aprovou as diretrizes para a incorporação e integração da mulher nos meios operativos e as regras de conduta e convivência entre militares da Marinha”.
Fonte: Folha de São Paulo