Fome recua, mas ainda atinge 10 milhões de brasileiros
Levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Combate à Fome (FAO), divulgado na última quarta-feira (12), indica que, entre 2020 e 2022, 70 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar no Brasil. O número representa 32% da população, quase o dobro do contingente identificado no mapeamento anterior, referente ao período de 2014 e 2016, momento em que a vulnerabilidade nutricional atingia 18%.
Isto quer dizer que, um em cada três brasileiros não sabe se vai ter o que comer no dia seguinte. Ainda, de acordo com a pesquisa, aproximadamente 10 milhões de pessoas passavam fome no país no mesmo período (4,7%). A taxa demonstra um recuo em relação aos quatro anos anteriores, quando 12,1 milhões de pessoas não tinham acesso a alimentos (6,5%).
No mundo, os números chegam a 735 milhões de pessoas com fome e 2,4 bilhões em insegurança alimentar moderada ou grave. Segundo o relatório, o número de pessoas passando fome em escala global ficou estável entre 2021 e 2022, mas ainda é superior ao período anterior à pandemia do novo coronavírus, com 9,2% da população mundial atingida no ano passado contra 7,9% em 2019.
Insegurança alimentar severa cresce entre brasileiros
Em território nacional, a prevalência da insegurança alimentar severa no país aumentou de 1,9% entre 2014 e 2016 para 9,9% entre 2020 e 2022. O índice representa crescimento de 21 milhões de habitantes que passaram um ou mais dias sem se alimentar.
Fome é maior no Norte e Nordeste
As desigualdades regionais perceptíveis em diferentes áreas como nos rendimentos médios, acesso a saúde, educação, saneamento básico, também estão presentes na oferta dos alimentos. Com base em investigação conduzida pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), Norte e Nordeste, abrigam o maior percentual de famílias passando fome no país.
Juntas, as duas regiões possuem cerca de 17 milhões de pessoas com restrição muito grave de alimentos. O Centro-Oeste é a localidade com o menor índice: pouco mais de 2 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar. Na sequência, está a região Sul, com aproximadamente 3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave.
Frente a este cenário, Naomi Mayer, cientista social e cozinheira argumenta que “a fome não é uma questão de falta de comida”. A pesquisadora explica que, embora a pandemia do novo coronavírus tenha acelerado o regresso do Brasil ao mapa da fome, desde 2018, os índices de insegurança alimentar têm aumentado. De acordo com ela, o problema vem de antes e é reflexo da falta de políticas públicas, aumento do desemprego, empobrecimento da maioria da população e crescimento da inflação que atinge, principalmente, o bolso das camadas mais pobres.
“Com a desvalorização do real, é muito mais vantajoso para o agronegócio vender comida do que alimentar o próprio povo brasileiro. O reflexo disso é de que aqui a comida está custando muito caro e estas pessoas estão ganhando muito com a exportação”, pontua.
A indústria brasileira de alimentos e bebidas registrou aumento de 16% no faturamento e de 2,5% na produção em 2022 em relação a 2021. No ano passado, a receita do setor chegou a R$ 1,075 trilhão, somando exportações e vendas para o mercado doméstico. Os dados são da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA).
Mayer reforça a necessidade de valorização dos pequenos agricultores. “É possível produzir comida de verdade, sem agrotóxico. Mas a agricultura familiar que não usa agrotóxico é subjugada. O governo dá muito mais subsídio para a grande agricultura, para quem usa agrotóxico e fica muito difícil para o pequeno produtor e para convencer as pessoas de que é possível produzir comida sem veneno, mas é”, analisa.
Cooperação internacional
Na sexta-feira (14), por iniciativa do Brasil, através da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), 16 países assinaram uma declaração de cooperação conjunta para erradicar a fome e garantir a segurança alimentar na América Latina e Caribe. Na região, há mais de 267 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave ou moderada. Além disso, 33% da população está em situação de pobreza.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.