Leio, nesse portal, que um desandado atirou (espingarda de chumbo) contra um jovem skatista, na zona norte de Londrina. Do que se apurou o atirador estaria incomodado com o barulho vindo da pista de skate onde a vítima e outros adeptos do surfe do asfalto se divertiam em um sábado.
Olhem o motivo do disparo e pesem, na balança do viver, a reação do atirador, buscando um olhar mais atento ao acontecido. Eu o fiz e, ao fazê-lo, vivenciei a erosão de nosso tecido social – definitivamente há algo de muito errado no mundo na altura em que nos encontramos.
Uma equação dessas (incomodo pelo barulho vindo de uma pista de skate) não poderia desaguar no resultado aportado, onde o tiro disparado é um tiro que isoladamente feriu alguém e, coletivamente, nos alcança a todos, naquilo que a absoluta irrelevância do motivo colore em cinza nosso mundo já cinzento, pródigo em apologizar ditadores, torturadores, milicianos, assassinos de aluguel e outras tragédias mais.
Nessa medida o desvalor da conduta (tiro) é sub-rogado do desprezo à vida que se pronuncia com ênfase sistêmica, notadamente de 2016 para cá, naquilo que o Santo Graal da empatia se perdeu na fake news usada para justificar o impedimento de Dilma Roussef.
Deveras, com a disseminação da mentira utilitária (já que serviu ao propósito político que a pariu) se espraiou por aqui o entendimento que as situações tendem a se acomodar na esteira da vontade e do desejo do capital – que outra circunstância justificaria aquela gente que acampou em frente aos próprios do exército pedindo por um golpe de estado?
Essa sensação pariu a patologia de abandono do armário que moldou o pensamento neopentecostal. Outro tanto, o signo do agronegócio alcançou as vinhas escravocratas do sul e estamos (pois) a perseguir minorias desde sempre – a diferença é que, agora, parece que o deus próprio dos neopentecostais aplaudiria a segregação em curso.
Não há mais paz, naquilo que sequer leituras rasas estamos desenvolvendo. Demais disso, os grupos sociais historicamente excluídos do processo de garantia dos direitos básicos seguem os mesmos e os motivos se reinventam e se projetam (questões étnicas, de origem, financeiras, de gênero, sexualidade) e, quase sempre, estão atreladas às mazelas que a ignorância machista pariu no solo brasileiro.
Assim é que, por aqui, as minorias seguem alvo de apedeutas, pelos motivos de sempre (ideológicos, econômicos, de gênero, etnia, origem, sexualidade). A novidade é o suporte fascista, naquilo e ao tempo em que o bolsão de ódio totalitário segue alimentando o abando da empatia e desbloquando a raiva. Talvez isso explique apologizar alguém como brilhante ustra.
Perdemos, todavia, todos nós, com o desenho do disparo contra jovens que andavam de skate em um local destinado a seu uso (pista de skate), naquilo que a selvageria do ato projeta a sombra do anjo caído.
Demônios e deuteronômios à parte, Gaya segue o ritmo de nosso desapego civilizatório, aspergindo a mudança climática mais severa que Europa já sentiu e a nós outros não tarda alcançar com tamanha significação.
Já não somos, estamos!
Sim, quando deixamos de ser empáticos e passamos a perseguir minorias e a lhes referir enquanto objeto de um bullying existencial, a um só tempo potencializamos a distância que nos nega e o desapego que nos diminui.
O ‘inverno de nossa desesperança’ promete, ainda que em pleno verão europeu, naquilo que já não me parece bastante aproximar a américa então dividida em duas vertentes (moral e ética versus adaptação), para resgatar o bem querer aviltado no desvalor à vida que o século 21 assiste emergir da lagoa.
É que não creio que as hipóteses ligadas à possíveis falhas de formação do caráter do atirador tenham como ser resolvidas em favor da sociedade, naquilo que a raiva sempre estará presente nas equações que remetem a bem e mal. O que se agregou enquanto elemento novo foi o desapego à vida, compreendido em nossos dias como ausência de freio inibitório do despossuído de amarras ético e morais.
Guardadas as proporções, foi essa mesma irracionalidade de um mau perdedor (aécio neves) que percorreu o país com um discurso patrocinado pelo mercado quem alicerçou a fake news (pedaladas fiscais) que custou o mandato da então Presidenta Dilma.
Foi a mentira quem abriu a porta do armário fascista, mas quem chocou o ovo da serpente foram as rêmoras existenciais do mercado, que premiam o rentismo de menos de 1% de nossa população, em detrimento à colossal diferença que segue padecendo da luz que a sombra do anjo caído espraiou.
A recente divisão que se impõe a nossa sociedade não alinha qualquer hipótese empática, naquilo que o mercado segue sobrevivendo da exploração (do próprio homem e da natureza), perfazendo o desenho das estruturas sociais (infra e supra) antevisto por Marx.
A américa latina, todavia, não pode se alinhar ao neocolonialismo pilgrin, sob pena de nos curvarmos ao abandono e ao desamor, alimentando o culto de um Deus mercadológico, que insiste em alinhar o ideário egoístico ao pensamento liberal de última geração.
Som e fúria já não sustentam o próprio peso e o skate se quebrou com o chumbo atirado pelo desapego de valores humanistas. O jovem skatista foi ferido, mas quem sangra somos eu, você, Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone, Mário…
Sangram as veias abertas de américa latina na espanhola derradeira que projeta sobre os seios da beleza caída, o suco de um regozijo ditado pelo mal me quer, enquanto as ilusões se despedem da inocência, perdendo no dia o significado da noite.
Vencer o fascismo demanda mais que estabelecer um plano de governo social de resgate e proteção ao ideário minórico – ainda que este ecrã seja fundamental; há que se pelear todos os dias, sem cessar, naquilo que a escuridão não se cria no enfrentamento.
Será da peleia, pois, que emergirá o nosso encontro com a beleza, em uma estrada pontuada de consideração, naquilo que o caminho está traçado desde que o Poeta milenar desenhou: ‘sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável, amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível, tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível. Essa é a minha questão! ’
E a tua, atirador de chumbo? Qual seria? Dar vazão à raiva? É do que se trata, ou a patologia que abraça o teu desapego vem embalada no abandono do conhecimento? São, como se vê, muitas as hipóteses – apenas a vida segue se impondo ante a deterioração do conhecimento, aprisionada nos discursos de ódio que catalisam o fascismo no século 21.
Parece que a verdade segue sendo exagerada, ainda que inquebrantável e sempre ao alcance do conhecimento – não é mesmo Sancho?
Tristes trópicos, onde quem se incomoda atira.
João dos Santos Gomes Filho
Para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.