Seguindo a proposta de desmonte da educação pública, o “homeschooling” tramita no Senado e tem causado debate em todo o país; em Londrina, a câmara de vereadores optou em arquivar o projeto de lei
Na semana passada (24), a Câmara de Londrina arquivou o projeto que tentava instituir o homeschooling na cidade. Emprestado dos norte-americanos, o termo se refere ao que o presidente do APP Sindicato em Londrina, Márcio André Ribeiro, classifica como um ensino caseiro: “Esta é uma coisa importada, aliás, do único país em que a educação pública não funciona, que é os Estados Unidos. Em nenhum outro lugar do mundo você encontra um absurdo desses: uma educação em casa, sem ser mediada por profissionais capacitados”, pontua.
A nível federal, o projeto relatado pela Deputada Luísa Canziani (PSD) prevê que os responsáveis possam optar pela educação formal das crianças em casa. A professora do departamento de educação da UEL, Adriana Farias Medeiros, explica que a educação, nesse sentido, se ramifica nos seguintes níveis: “A educação informal vem de casa. A não formal; nos espaços da igreja, nos espaços sindicais, nos espaços do convívio. A educação formal é na escola. Então, quando a gente faz a defesa da escola, a gente não tá negando a existência da educação informal e da educação não formal. Mas a educação domiciliar quer substituir a educação escolar, o que ela é incapaz de fazer. Sem dúvida, pela valorização de uma função coletiva, social que a escola tem que ter que é a capacidade de acumulação de conhecimento que diferentes profissionais da educação que compõem a escola podem desempenhar, e a formação profissional específica que eles têm. A pedagogia é ciência!”, disse.
Sujeitar a criança a uma única maneira de acesso à educação, dentro de espaços informais, inviabiliza o contato dela com a diversidade, com a formação cidadã e com vários papéis extraclasse que os profissionais desenvolvem: o reconhecimento de violências psicológicas e sexuais, abusos, doenças, entre outros problemas que, na maioria das vezes, não são denunciados entre a própria família.
A vereadora Lenir de Assis, se posicionou contrária ao projeto em Londrina, via voto na Câmara. “O que está por trás disso é a privatização da escola, a privatização da universidade, a retirada de recursos”, afirma.
O filho do pobre pode estudar?
A educação pública no Brasil, diferente de outros países, é parametrizada e acompanhada muito de perto pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep. Para se ter uma noção, em 2008, por exemplo, 28% das crianças tinham aprendizado mínimo adequado em língua portuguesa. Já em 2018, este número saltou para 60%, ou seja, mais do que o dobro, em dez anos.
Acontece que, com o congelamento de gastos na área por vinte anos, associado aos efeitos da pandemia, há muito o que recuperar. Uma proposta de educação caseira, domiciliar, condiciona a sociedade a oferecer educação somente a quem pode pagar por ela.
Lenir de Assis avalia esta conjuntura: “Quem você quer que esteja se apropriando do conhecimento através da escola? É apenas aqueles que podem pagar por ela? Isso é o que está posto hoje. Ou é a universalidade? Assim como é a saúde. Porque a partir do momento em que se pensa a escola como direito de todos os cidadãos, e o desejo do Estado de que todas as pessoas estudem, para que você tenha uma sociedade inclusiva, uma sociedade de conhecimento, aí você investe na educação. Então a pergunta é: que sociedade você quer? Se é uma sociedade para poucos e apenas aqueles que têm acesso, então o homeschooling é uma beleza. Agora se você é um agente público que pensa que a educação é para todos, de qualidade, acessível, aí você investe na escola.”
Em uma família de nove irmãos, Lenir foi a única a ir para a universidade – além de seguir carreira política, é socióloga, com doutorado em curso. Depois dela, todos os seus trinta e cinco sobrinhos não só tiveram acesso ao ensino fundamental, como também ao superior, graças à educação pública e políticas públicas como o ProUni e Fies.
Nas palavras de Lenir: “A criança tem o direito de frequentar a escola, que é a instituição responsável em preparar o indivíduo para o convívio da sociedade. Quando você retira isso da criança, você passa a defender projetos como esse”, disse a vereadora.
O presidente da APP/Londrina, Márcio André Ribeiro, avalia quem seriam as crianças que, de fato, teriam condições de acesso a um ensino domiciliar: “No nosso entendimento, um grupo muito pequeno que já tem, na verdade, uma vivência e uma educação extremamente elitizadas, e vai apenas acentuar mais ainda essa característica. São pessoas que vão viver à margem da sociedade, num mundo onde não vão aprender a conviver com as diferenças que nossa sociedade tem: étnicas, de identidade de gênero, de classes sociais, de pensamentos. Crescerão à margem da sociedade de forma muito negativa”.
Uma pauta de costumes
A deputada Luísa Canziani, em um vídeo no seu canal do YouTube, alega que o homeschooling não seja uma pauta de costumes, descentralizando o debate relativo à educação. Lenir de Assis comenta: “Você tá acabando com a educação pública e lidando com ela como se ela não fosse uma pauta de educação. O que o “costume” tá falando? É o costume da escravidão? O costume do escravagismo? Do imperialismo? Esse é o costume da violência doméstica, do machismo, do preconceito, da violência contra a criança. Estes são os costumes que estão em jogo. O costume de não investir na escola pública. De legisladores irresponsáveis, que não querem a universalidade dos direitos”.
A professora Adriana Medeiros Farias, por sua vez, alerta para o projeto ultraconservador em curso: “não somos favoráveis a esse processo espontaneísta, que é entregar para responsáveis, que não são profissionais da educação, a tarefa de sistematização e socialização dos conhecimentos produzidos pela humanidade. E o que a pandemia já nos ensinou? Que não é suficiente a utilização de plataformas de tutoria para a formação humana, [que pressupõe] o respeito, a convivência com a diferença, e não a tolerância”.
Quando a educação vira negócio: a escalada da privatização
O interesse de fazer a educação domiciliar, é, segundo Adriana Medeiros Farias, para poucos: “é o interesse de uma parcela pequena da população que tem recursos para pagar um nicho de mercado que se expande com o homeschooling – que é a plataforma, a tutoria. Não podemos nos esquecer que isso traz um nicho que seria ocupado, sim, por editoras, aplicativos, plataformas… Que é muito diferente de uma discussão sobre educação de qualidade, qualificação do trabalho docente, estrutura escolar, então não tem parâmetro para comparar o que seria uma educação domiciliar e a função domiciliar da escola”, avalia.
Segundo ela, visando este nicho de mercado possível, a pauta se configura de maneira muito interessada, visualizando a educação como uma mercadoria e as crianças como potenciais clientes. Fato é que, mais uma vez, pouquíssimas pessoas podem arcar com esta realidade, tendo em vista, principalmente, os anos necessários à formação escolar.
“Não há como a família substituir o papel que é da escola”
O professor Luiz Carlos Paixão, que atua na rede estadual de educação desde 1993 e é ex-dirigente Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) defende o plano nacional de desenvolvimento da educação que garanta a autonomia intelectual para todos os estudantes.
Ouça a entrevista exclusiva concedida ao Portal V. No áudio abaixo, ele faz uma explanação sobre o trabalho realizado nas escolas, demonstrando como elas funcionam e qual sua importância e função social:
Clique aqui e confira o manifesto da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped).
Texto: Leiliani Peschiera | Portal V