A UFBA anunciou que irá conceder o título à presidente de honra da Fenatrad
O que acontece com uma universidade pública quando amplia o seu olhar para além dos muros institucionais? O que muda na sociedade quando a luta e a trajetória da maior categoria profissional do país entra de cabeça erguida pelos portões principais do ensino superior? Cabem muitas respostas para essas questões, mas o que se sabe mesmo é que a Presidente de Honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Creuza Oliveira, será homenageada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ainda sem uma data definida.
Esta não é só uma homenagem é, sobretudo, a primeira vez que uma liderança sindical das trabalhadoras domésticas vai receber esse tipo de honraria no Brasil. As expectativas são enormes tanto para a homenageada, que vê no reconhecimento uma celebração da luta coletiva, quanto para a equipe docente que organiza o prêmio e entende o débito histórico que a academia tem para saldar com os movimentos populares.
“A gente não conquista nada sozinha, tudo depende de um conjunto de apoios. Então, a gente chegou até aqui através de apoio, mas com a gente à frente. Nada para nós sem nós. Por isso, com certeza, essa é uma vitória muito grande”, declara Creuza, ao reconhecer a relevância dessa titulação. A entrega ainda não tem data definida, mas tem previsão de acontecer entre o final de setembro e o início de outubro.
“Com certeza, a UFBA está tendo o privilégio de conceder essa honraria à Creuza de Oliveira. O beneficio é, sobretudo, para a UFBA. Quantas pessoas se tornaram mestras e doutoras pesquisando com a história de trabalhadoras domésticas, de Creuza de Oliveira? Quantos desses pesquisadores retornaram para devolver ou mesmo contribuir com a categoria? A UFBA paga uma dívida histórica”, declara a professora Elisabete Pinto, professora do Instituto de Psicologia da UFBA e uma das responsáveis por coordenar o grupo organizador da homenagem.
Humilde e generosa, Creuza sabe do seu valor político para a causa, mas faz questão de demarcar que essa premiação não é só sua. “Quem está recebendo esse título não é Creuza, mas a história, a luta que a gente sempre enfrentou junto como várias companheiras que, historicamente, estiveram na lida e na batalha por direitos. Dona Laudelina, Naijane, 92 anos (do Rio de Janeiro), Zica, 91 anos (do Rio de Janeiro), todas mais velhas. Lenira de Carvalho, que não está mais entre nós, mas é uma guerreira da região nordeste. Essas mulheres que deram início a essa luta antes de mim e em prol dos direitos das trabalhadoras domésticas desse país”, diz a homenageada ao apontar que os seus passos vêm de longe.
“Creuza, com sua história, não somente contribui para formação de doutores, mas, enquanto uma intelectual orgânica, transformou o rumo da história de muita gente, ao batalhar pelos direitos humanos e a dignidade das trabalhadoras domésticas do Brasil. Ao lutar pela construção do Condomínio 27 de abril, possibilitando que muitas trabalhadoras tivessem, pela primeira vez, sua própria casa”, afirma Elisabete. E acrescentar que esse reconhecimento público pode transformar as vidas de muitas e muitos.
“Estudantes que vêm de família pobre, negra, periférica, e ainda acreditam que a universidade não é um espaço para estarem e desfrutarem. Ainda acreditam que a universidade não é para todos e ainda continuam com vergonha da sua história”, pontua a professora ao listar todos os aspectos positivos da premiação.
O nome da Creuza de Oliveira foi uma reivindicação do próprio movimento sindical. Levada à Universidade, foi montado um grupo de trabalho, inicialmente, com o suporte da então diretora do Instituto de Psicologia, Ilka Bichara. Esse grupo de trabalho foi constituído por integrantes do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Salvador, da FENATRAD, Casa Laudelina de Campos Mello e Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Desta forma, trabalhamos por semanas na construção da documentação necessária, incluindo o memorial de Creuza Oliveira, a partir das contribuições de Cleusa Aparecida da Silva, pofessora Mary Castro, Pedro Castro, Luiza Batista, José Ribeiro. Importante mencionar aqui as companheiras Marina da Cruz Silva e Patrícia Carla Zucoloto que dividem comigo a coordenação do programa Universidade Multicultural”, declara Pinto.
Além dos muros da academia
Creuza reforça que a academia sempre esteve longe das bases e dos movimentos sociais, mas sabe também que nos textos, as trabalhadoras domésticas sempre foram objeto e base de pesquisas. “A universidade, a academia sempre bebeu na fonte das organizações populares, do movimento sem terra, do movimento sem teto, das trabalhadoras domésticas, do movimento negro, do movimento de mulheres. Sempre esteve pesquisando, mas, a nível de reconhecimento, isso não acontece. Essa troca, essa recíproca não existe, no caso da academia”, afirma Oliveira feliz pelo reconhecimento, mas, ao mesmo tempo, sem perder a dimensão crítica.
“Hoje, nós damos passos adiante, e acho que a academia está fazendo o seu papel de se aproximar do movimento social. Reconhecer o movimento que sustenta o país na luta por igualdade, na luta por dignidade para as populações. Com certeza, é muito importante esse reconhecimento”, declara Oliveira.
Nesse quesito da importância, Elisabete também concorda. “Esse título poderá, talvez, fazê-los entender que coletivamente podemos mudar o rumo da nossa história por meio da educação, que é para todas as pessoas. E também pode mudar a visão da universidade, no tocante à relação que esta agência de ensino tem mantido, muitas vezes, com os movimentos”, diz.
Além desta homenagem, Creuza acumula no currículo outros reconhecimentos e premiações. No dia 1º de julho, Creuza foi agraciada com o título de comendadora da Ordem Dois de Julho – Libertadores da Bahia. A sindicalista recebeu também o Prêmio Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, em 2003 e em 2011, pela luta contra o trabalho infantil e por igualdade racial. Em 2005, foi indicada ao Prêmio 1.000 Mulheres para o Nobel da Paz.
Direitos, conquistas e luta
A PEC das Domésticas completou uma década e o primeiro direito trabalhista conquistado pela categoria, a carteira de trabalho, completa meio século em 2023. Esses marcos representam muito na luta dessas trabalhadoras. Creuza reconhece as conquistas e lembra que tudo foi conquistado com muitos enfrentamentos. “Para nós, nada nunca foi fácil. Nunca foi fácil para a população negra, para os trabalhadores negros e negras desse país, mas, em especial, para as trabalhadoras domésticas que sempre estiveram no âmbito privado dos lares, nas residências dos palácios. Ali no quartinho do fundo, nas dependências, em péssimas condições de espaço, de ventilação”, declara.
“Nesses 10 anos de PEC das domésticas e nesse meio século, ou seja, nos 50 anos do direito à carteira assinada e mais 80 anos de organização sindical, com certeza foi muita caminhada pra gente chegar até aqui e, agora, para ter o reconhecimento da academia”, comemora Oliveira ao acreditar que a luta sempre vale a pena.
“Eu conheço trabalhadoras domésticas que tiveram suas filhas reconhecidas com curso superior. Eu tenho na minha família pessoas que trabalharam no trabalho doméstico a vida toda e não tiveram oportunidade de se alfabetizar e, no entanto, hoje, têm filhos e filhas fazendo faculdade, se formando. Isso é um avanço, porque nós não queremos que os nossos filhos e nossas filhas tenham o mesmo futuro que a gente. A gente sempre diz que os nossos filhos, nossas filhas, têm direito de estar aonde eles e elas quiserem”, afirma.
Ao reconhecer que a academia está abrindo as portas, dando oportunidade para jovens negros e pobres da periferia, Creuza reforça que a instituição está fazendo cumprir o seu dever e propósito. “Não podemos ter projetos direcionados só para um grupo social, sem olhar o país como um todo. Nós construímos esse país, contribuímos com o crescimento e a riqueza do país. A gente quer também ter direitos iguais. Ter também a nossa parcela no reconhecimento. Então, é necessário este olhar da academia para as diversas populações que nós temos na sociedade”, destaca a sindicalista.
“A gente só tem vitórias. Apesar da luta e das desigualdades que ainda existem, o não cumprimento da lei, os patrões que burlam a lei para não pagar o direito, inscrevendo as trabalhadoras domésticas como MEI. Ainda neste século, a gente acompanhando o resgate de trabalho análogo à escravidão, um absurdo”, afirma Creuza.
“A gente vê o Estado homologando a discriminação e o desrespeito, como a decisão judicial onde o juiz alega que uma trabalhadora doméstica, que iniciou o trabalho aos 7 anos de idade, não tinha vínculo empregatício e ele não via ali trabalho escravo e, sim, como se ela fosse da família. Se um cara desse que está lá para defender, para julgar, para não permitir violações aos direitos humanos, diz isso, não era nem pra esse homem ser juiz”, declara indignada. Diante de retrocessos como estes no âmbito do judiciário, Creuza comemora as vitórias, mas sabe que a luta não pode parar.
Fonte: BdF Bahia