Com o trabalho de conclusão de curso intitulado “Potencialidades: Praia dos Ossos, Ângela Diniz e todes nós”, Franciele Rodrigues, formada em Ciências Sociais e Jornalismo pela UEL, atualmente, doutoranda em Sociologia e jornalista no Portal Verdade, recebeu o 2º lugar do Prêmio José Marques de Melo de Estímulo à Memória da Mídia, durante o XIV Encontro Nacional de História da Mídia. O evento, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar), ocorreu entre os dias 2 e 4 de agosto na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro.
Apresentando sua pesquisa no grupo temático “História da Mídia Alternativa”, Franciele Rodrigues abordou a análise do podcast “Praia dos Ossos”, produzido pela Rádio Novelo e lançado em 2020. O podcast revisita o feminicídio de Ângela Diniz, cometido pelo, então companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido por Doca Street, em 1976, na cidade de Búzios. Segundo a pesquisadora, a produção, apresentada por Branca Vianna, aborda questões como violências de gênero, masculinidades, expectativas em relação ao papel mulher na sociedade.
Confira a entrevista:
Portal Verdade: Sobre o que é o trabalho? Como foi desenvolvido?
Rodrigues: A pesquisa foi apresentada ao Departamento de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina em junho de 2022, sob a orientação da professora Márcia Neme Buzalaf, e traz uma análise do podcast “Praia dos Ossos”, criado pela Rádio Novelo.
Assim, o estudo parte do seguinte problema de pesquisa: Quais as potencialidades do podcast “Praia dos Ossos” para a desconstrução dos estereótipos de gênero na sociedade brasileira?
Nossos principais objetivos foram entender as relações entre radiojornalismo e a produção de podcasts, compreender as interações entre meios de comunicação e estereótipos de gênero para assim captar quais sentidos de feminilidade e masculinidade o “Praia dos Ossos” compartilha, ou seja, buscamos interpretar quais significados podem ser extraídos da narrativa empregada nos oito episódios com o intuito de apresentar Ângela Diniz e as violências das quais ela foi vítima.
Quais as principais conclusões da pesquisa?
Observamos que o “Praia dos Ossos” contribuiu para apresentar outra versão da história sobre quem foi Ângela Diniz e a violência que ela sofreu. Diferentemente dos meios de comunicação hegemônicos à época (O Globo, Folha de São Paulo, revista Manchete são alguns exemplos) que cooperaram para revitimiza-la, retratando-a de maneira hipersexualizada, e angulando o feminicídio como “crime passional” (o que ainda acontece), o podcast questionou esta abordagem, tratando o assassinato não como uma ‘a perda de controle de um homem que matou a mulher porque a amava demais e não aceitou a separação’, mas como uma violência dentro de uma cultura extremamente machista que ainda compreende mulheres como propriedade privada dos homens (pais, irmãos, companheiros).
Também contribuiu para desmistificar a tese da “legitima defesa da honra”, aceita pelo sistema judiciário naquele momento e até recentemente, visto que somente neste mês, ou seja, mais de 40 anos depois o STF (Supremo Tribunal Federal) estabeleceu a inconstitucionalidade do argumento em julgamentos de feminicídio.
A tese foi responsável por converter Ângela não mais em vítima, mas em ré, na medida em que o advogado de Doca Street, Evandro Lins e Silva expôs o comportamento da mulher, transformando práticas e dissidências ao (cis)tema heteropatriarcal como consumo de álcool, liberdade sexual, relacionamentos com outras mulheres em “justificativas” para a violência sofrida por ela.
Ainda, observamos que o podcast cooperou para demonstrar a articulação dos movimentos feministas entre o final da década de 1970 e 1980, já que a movimentação das mulheres foi fundamental para que houvesse um segundo julgamento. O “Praia dos Ossos” trouxe fontes diversas sobre a história, chegando a entrevistar, inclusive, o assassino, Doca Street, demonstrando, assim, que a variedade de vozes e a definição de quem irá falar nas pautas é também um exercício de poder.
Ademais, refletir sobre a produção do “Praia dos Ossos” corrobora para a compreensão das relações entre radiojornalismo e podcasts, percebendo como estes últimos têm levado a uma ressignificação da escuta dos conteúdos sonoros nos últimos anos.
O que a premiação representa para você e sua carreira como jornalista e pesquisadora?
Considero que a premiação é muito importante, pois ensina sobre o jornalismo e a ciência em que acredito, isto é, enquanto instrumentos críticos, propulsores de vidas (no plural), que busquem romper com estereótipos e os discursos dominantes, dos que sempre possuem o direito à fala garantido.
Além disso, acho muito significativo que produções com este viés, que questionam a ordem social estabelecida, tenham reconhecimento, pois penso que este tensionamento é preponderante para a construção de uma realidade outra, que seja mais igualitária. É importante destacar que o trabalho não encerra com “considerações finais” e sim com uma carta endereçada à Ângela Diniz. A proposta foi trazida por minha orientadora, professora Márcia.
Neste sentido, considero que a premiação também instiga a construção de um conhecimento científico que não seja encastelado, apenas reprodutor de citações, ao contrário disso, preza uma ciência que seja diversa, dialógica, que rompa com os “perigos de uma histórica única”.
*Matéria da estagiária Victoria Luiza Menegon, sob supervisão.