Coletivos denunciam demissões em massa desfalcando quadro técnico
Na última terça-feira (15), todas as unidades da federação, com exceção apenas de Roraima, sofreram um “apagão”, isto é, a interrupção inesperada e generalizada do fornecimento de energia elétrica.
Leandro José Grassmann, engenheiro eletricista, presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná (Senge-PR) explica, que o Sistema Interligado Nacional (SIN) – composto, principalmente, por usinas hidrelétricas distribuídas em diferentes regiões do país – forma um conjunto de linhas de transmissão e subestações (estação secundária que em uma rede elétrica, transforma e distribui a corrente de uma central) que aumenta a confiabilidade.
Assim, caso uma linha de transmissão ou subestação falhe, outras assumem parte ou toda a carga transmitida, o que faz com que inconsistências, muitas vezes não sejam percebidas pela população, mas esta capacidade é restrita. Além disso, de acordo com o especialista, o Sistema Interligado Nacional tem operado muito próximo do seu limite em várias localidades.
“Se uma linha de transmissão ou subestação falha, pode ser que as demais não consigam suportar o remanejamento de carga. Acaba ocorrendo efeito cascata, e grandes áreas ficam sem suprimento de energia. É como uma malha de rodovias com muito tráfego. Se uma congestiona, os motoristas tentam desviar por outras, mas se as outras já estão cheias, congestionam”, pontua.
Em entrevista coletiva na tarde desta quarta-feira (16), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, a Chesf, subsidiária da Eletrobras, foi responsável pela linha de transmissão que apresentou falhas no Ceará. O responsável pela pasta também defendeu a abertura de uma investigação da Polícia Federal sobre o caso já que uma interrupção de tamanha proporção dificilmente seria gerada por um fato isolado.
Trabalhadores alertaram sobre apagão
Roberto Nigro Mattos, engenheiro eletricista, diretor financeiro do Sindicato dos Eletricitários de Londrina e Região (Sindel) e coordenador da Intersindical dos Eletricitários do Sul do Brasil (Intersul), que é participante Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), ressalta que desde o início do processo de privatização da Eletrobras, as diversas entidades sindicais que representam o setor vêm alertando a sociedade e poderes públicos (senadores e deputados) sobre os riscos de deixar o controle do sistema elétrico do país nas mãos de grupos econômicos interessados apenas no lucro. “Esse apagão pode vir a ser apenas o primeiro de muitos que poderão ocorrer se o governo não retomar o controle da Eletrobras”, afirma.
Em maio de 2022, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou a capitalização da Eletrobras, o que significa a venda para a iniciativa privada ao passo que a participação estatal na administração da empresa foi reduzida. Naquele momento, os coletivos denunciaram prejuízo na ordem de no mínimo R$ 40 bilhões na transação, além de outras irregularidades.
Porém, Mattos evidencia que as ofensivas contra a Eletrobras começaram antes. De acordo com ele, desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a ascensão de Michel Temer (MDB), o processo de sucateamento da empresa tem se intensificado, levando, assim, a ideia de que a privatização seria a única saída. “Acontece que, desde a ascensão de Temer, vem ocorrendo desinvestimento na Eletrobras, a empresa perdeu o protagonismo que sempre teve no setor elétrico nacional, as atividades de inspeção e manutenção passaram a ficar em segundo plano, negligenciadas, pois o intuito era o de preparar a empresa para a privatização”, destaca.
Após o apagão, profissionais de operação e manutenção dos sistemas de geração e transmissão da Eletrobras escreveram uma carta ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em crítica à desestatização da empresa. “Senhor Presidente, para finalizar esta carta é um pedido de socorro à Eletrobras”, indicam os trabalhadores, que denunciam o “sucateamento acelerado do quadro técnico operacional das empresas Eletrobras”.
“Gestão do medo”
Para Grassmann, a privatização da Eletrobras segue a “mesma cartilha” de todas as situações em que a gestão dos serviços públicos é terceirizada para iniciativa privada: redução drástica nos recursos para manutenção e do quadro de funcionários. A finalidade passa a ser o aumento do lucro, atentando apenas interesses do mercado financeiro.
Desde o processo de privatização, trabalhadores da Eletrobras têm chamado atenção para as demissões em massa, aumento de acidentes de trabalho e casos de assédio moral. “Aumentam o salário dos gestores em todos os níveis, capturando-os para que façam parte do processo de ‘modernização’. Aumenta a pressão nos empregados para que produzam mais. Não raras vezes, passam por cima da ética e de normas técnicas, obrigando os profissionais a assumirem riscos para aumentar a produtividade e lucro. Quem questiona as novas metodologias é segregado, assediado e perseguido”, assinala.
Mattos também sinaliza que, com a privatização, o corte de custos com pessoal tem sido realizado de maneira “irresponsável” pela diretoria. Para a liderança, a falta de profissionais compromete a qualidade do serviço prestado e a tendência é que a resolução de falhas demore cada vez mais. Na última terça-feira, as regiões Norte e Nordeste chegaram a ficar mais de sete horas sem abastecimento de energia, afetando outros direitos essenciais desde o fornecimento de água ao fechamento de escolas.
“Além da redução dos quadros técnicos na Eletrobras, com a demissão de trabalhadores, há também o reflexo da gestão do medo na atuação destes profissionais. A campanha publicitária caríssima denominada ‘Eletrobrasilidade’ da Eletrobras, tem por base sobrecarregar o quadro técnico, descumprir normas de segurança, aumentar os acidentes de trabalho, diminuir salários e benefícios dos trabalhadores enquanto diretores aumentam suas próprias remunerações em até 3.000% e a consequência é o adoecimento do quadro técnico. Depressão, síndrome do pânico, atentados às próprias vidas são situações corriqueiras na categoria eletricitária atualmente”, adverte.
Ainda, segundo Grassmann outro problema enfrentado pelos trabalhadores da empresa que deixou de ser estatal é a promoção de programas de demissão voluntária, o que tem gerado o esvaziamento de um quadro mais autônomo. Tais profissionais, quando substituídos, dão lugar para outros funcionários contratados com remunerações inferiores. “A intenção é que os ‘velhos’, leia-se aqueles que tem argumentos técnicos para contestar o que está sendo feito saiam e entrem profissionais mais novos, obviamente por uma fração do salário”, aponta.
Em julho, a Justiça do Trabalho suspendeu demissões da Eletrobras em todo o país até que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.385, ajuizada pelo governo Lula. O documento é responsável por contestar ilegalidades no processo de venda da empresa. Com a decisão ficam proibidos quaisquer desligamentos no período de 01 de maio de 2023 a 30 de abril de 2024.
Luta pela reestatização
Mattos garante que uma das principais reivindicações da categoria é que a Eletrobras volte a ser gerida pelo estado. “A reestatização poderia ocorrer com a aprovação de um novo projeto de lei, o que no cenário atual, com um Congresso Nacional muito mais alinhado com o mercado financeiro do que com o povo e o futuro do país é muito difícil acontecer. Mas urge que o STF se pronuncie sobre a ADI nº 7.385, de maneira que o estado possa se manifestar e atuar nos atos de gestão da empresa que mantém quase 46% das ações, mas está limitado a 10% devido as regras absurdas dessa privatização criminosa”, analisa.
Grassmann também pontua a importância de que a empresa volte a ser pública, mas acredita que a tendência é que o episódio caia no esquecimento. “Muito provável que releguem os argumentos técnicos a segundo plano e encontrem uma desculpa qualquer pra justificar. Basta ver a Light [empresa de energia no Rio de Janeiro] quebrada pelos administradores (os mesmos das Lojas Americanas), onde usam a desculpa de que os roubos de energia foram o motivo”, diz.
“É inadmissível que a sociedade brasileira fique à mercê do mercado financeiro, enquanto, a segurança nacional fica em segundo plano. A reestatização de grandes empresas do setor de energia mundo afora, como a EDP na França dá o tom que o Brasil deve seguir, empresas de prestação de serviço essencial devem ser valorizadas e estatais, é o nosso lema de campanha, água e energia não são mercadoria”, acrescenta Mattos.
Venda da Copel também preocupa
Na última semana, Ratinho Júnior (PSD) finalizou o processo de privatização da Companhia Paranaense de Energia (Copel). Conforme anunciado pelo Portal Verdade, com a venda, o governo do Paraná reduziu sua participação na empresa de 69,6% para 32,3%. Com novo lote de ações previsto para início em setembro, o poder estatal sob a empresa deve diminuir para 15,6% (saiba mais aqui).
“No setor elétrico, as privatizações das distribuidores estaduais sempre vieram acompanhadas de reflexos negativos para a população, o caso da COPEL não vai ser diferente, praticamente todas as distribuidoras de energia privatizadas figuram nas listas das empresas mais acionadas na justiça pelos péssimos serviços prestados. A tarifa também deverá ser um problema com certeza, assim como aconteceu em outros estados que tiveram suas distribuidoras privatizadas, o valor aumentou e a qualidade no serviço prestado à população piorou”, avalia Mattos.
Grassmann também compartilha do entendimento de que os paranaenses sentirão no bolso, os efeitos da privatização da maior empresa pública do estado. “A qualidade deve cair, assim como o tempo de atendimento deve aumentar. Vão reduzir equipes próprias, sobrecarregar as equipes terceirizadas. Só comparar com as demais empresas privadas. CEEE no RS, que ficou mais de duas semanas pra providenciar retorno de energia em Pelotas, Light no Rio de Janeiro que demora, em média, seis vezes o tempo que a Copel leva pra reparar falhas”, finaliza.
De acordo com a Copel, o apagão deixou 1,7 milhão de unidades consumidoras sem luz no Paraná.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.