Montagem, que estreia quinta-feira (23) no Cine Teatro Ouro Verde, conta a história quase esquecida de cantoras líricas pretas brasileiras
Estreia nesta quinta-feira (23) o espetáculo “Lírica Preta” que conta a história quase esquecida de cinco cantoras líricas pretas brasileiras: Joaquina Lapinha, Camila Maria da Conceição, Zaíra de Oliveira, Maura Moreira e Maria d´Apparecida. No palco, o retrato poético das lutas pela liberdade, respeito, preservação da cultura afro-brasileira e igualdade social. A montagem é o resultado de meses de trabalho do projeto “O Som da Escravidão”, patrocinado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PROMIC) da Secretaria Municipal da Cultura (SMC).
O projeto, idealizado por um grupo de artistas, contou com a participação de duas cantoras líricas negras da atualidade: as irmãs Edna D’Oliveira e Edineia de Oliveira. Através de um processo de estudo e pesquisa, o espetáculo resgata a narrativa dessas artistas no Brasil e a história política e cultural do que os idealizadores do projeto chamam de “matriarcado preto da música lírica brasileira”. As apresentações serão nos dias 23, 24 e 25 de novembro, às 20h, no Cine Teatro Ouro Verde. Os ingressos são gratuitos e devem ser retirados na bilheteria do teatro a partir das 19h. A classificação indicativa é livre.
Em cena, um espetáculo multilinguagens, uma espécie de ópera visual onde o protagonismo negro aparece em toda a ficha técnica, com profissionais, artistas e colaboradores na sua maioria, pretos. O espetáculo conta ainda com a participação da Orquestra Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina, a OSUEL, sob a regência do maestro convidado Alessandro Sangiorgi nas apresentações de quinta (23) e sexta-feira (24). No sábado, o público vai poder conferir uma segunda versão do espetáculo, apenas com acompanhamento de piano e atabaques.
A montagem tem dramaturgia e direção cênica de Carin Louro, direção musical e preparação do coro de Edineia de Oliveira, pesquisa histórica de Edna d’Oliveira, além de cenografia e figurinos de Gelson Amaral. O projeto conta ainda com parcerias importantes como a que foi firmada com o Laboratório de Cenografia & Cenotécnica, outro projeto que contou com o patrocínio do PROMIC, Fábrica Rede Popular de Cultura e Secretaria Municipal de Cultura, além do Coletivo Pimbim, de iluminação cênica. A produção leva a assinatura da PÁ! Artística.
Tudo começou com uma vontade antiga do trio, formado pelas cantoras líricas e o maestro Alessandro Sangiorigi, de montar um espetáculo com os Spirituals, canções de fundo religioso e carregadas de emoção que se desenvolveram especialmente entre os negros do Sul dos Estados Unidos, contando a história dolorosa do povo escravizado e da diáspora cruel e, por um outro movimento, o nascimento das primeiras orquestras brasileiras. “Os primeiros músicos de orquestra e cantores líricos brasileiros eram pessoas escravizadas. Quando a Corte Portuguesa foi embora levou consigo os seus músicos e a história que não nos contaram foi que homens escravizados era a maioria massiva nas primeiras orquestras, músicos formados pelos portugueses. Naquela época, ser músico – cantor ou instrumentista – era uma tarefa de baixa categoria”, revelou Edneia de Oliveira. “No Lírica Preta contamos a trajetória das duas primeiras cantoras líricas brasileiras Lapinha e Maria da Conceição, que saindo das Casas Grandes das fazendas, ganharam o mundo. Traçamos um paralelo até nossos dias, mostrando a trajetória de outras cantoras líricas brasileira negras. Um eco repetido nas histórias de todas as artistas negras, numa luta incansável contra o racismo e a invisibilidade, impostos a todas nós que sofremos hoje como as nossas pioneiras. O espetáculo é o nosso rosto, aquele da verdadeira história do Brasil”, completa.
O “Lírica Preta” leva para o palco mais tradicional da Cidade, a memória, o canto e a voz negra e mostra, como esse canto através de temas da música de raiz norte-americana, da música brasileira, de árias de óperas e outras canções tradicionais retratando, através dos sons, a importância da cultura afro na música erudita. Para a cantora Edna D’Oliveira é colocar em evidencia, através das histórias dessas mulheres, a trajetória de um povo que foi invisibilizado pelo racismo estrutural. “Não é apenas uma discussão atual, mas uma consequência de séculos de escravidão, que ainda perpetua. Esse espetáculo é um resgate, uma reparação musical e social dessa invisibilização que muitas mulheres negras sofreram durante os séculos. E nós hoje, mulheres negras atuais, temos a oportunidade de mostrar, através das nossas vozes, através desse espetáculo, que essas mulheres existiram e foram muito importantes para a nossa história”, afirmou.
Ela destaca Lapinha, a Joaquina Maria da Conceição Lapa, considerada a primeira cantora lírica do Brasil. “Ela foi a única mulher aceita para cantar em Portugal entre fins do século XVIII e início do XIX. Pisou nos palcos como mulher e cantora negra, obteve um enorme sucesso e é totalmente desconhecida aqui no Brasil. A música erudita não é para a elite, é para todos e o negro pode estar em todos os lugares. Os pretos e as pretas podem fazer aquilo que eles e elas querem fazer. Música popular, música erudita, ópera, música de concerto, não importa. O importante é que nós podemos e devemos ocupar todos os espaços”, pontuou.
Tantas vozes e um único fio condutor
O elenco do espetáculo, aquele que forma o Coro Lírica Preta, frequentou durante mais de seis meses aulas com a cantora lírica Edineia de Oliveira. Nele, cantores com mais ou menos experiência, de diversas gerações e universos musicais, como nos casos do famoso sambista londrinense Braguinha e sua filha, a cantora Luiza Braga, ou do cantor de 18 anos, Murilo Marques da Silva que começa a descobrir esse universo musical.
Amarrar todas as linguagens do espetáculo foi missão para Carin Louro e isso é feito através da música, grande fio condutor da montagem. Ela conta que o espetáculo começa com as memórias dos tempos da viagem e do trabalho forçados e depois, das influências da música ancestral nas canções brasileiras. “Quando as sonoridades africanas aportaram no Brasil, acabaram se misturando e assim surgiu outra música, que de certa forma sempre esteve conectada com essas pessoas que viajaram forçadamente, que tiveram que passar por todo tipo de violência, por toda essa angústia que foi a escravidão. Assim, pincelamos no espetáculo como foi essa transição da música, inclusive no contexto do canto lírico, da música erudita. E revelamos fatos históricos, como por exemplo, a ação orquestrada por pessoas dos movimentos abolicionistas, que aproveitavam os concertos de ópera para alforriar pessoas escravizadas”, frisou.
A dramaturgia do espetáculo é toda baseada na biografia das cinco cantoras negras, cada uma representando o seu próprio tempo. “Levantamos a importância da discussão sobre termos pessoas, artistas, cantores e cantoras, atrizes e atores pretos no palco. Isso se amplia para todas as artes, pessoas negras em papéis protagonistas”, disse Louro. Uma narradora conta episódios da vida dessas artistas que não tiveram reconhecimento ou foram obrigadas, por exemplo, a usar maquiagem para “clarear” a pele.
“A importância dessas mulheres no contexto artístico, como um todo, não só na música, é também uma forma de traçar um percurso, atravessando os tempos, dos artistas negros até os dias de hoje. Artistas que vão ocupar o palco do Teatro Ouro Verde como solistas, instrumentistas e compondo o coro”, completou a diretora. “A ideia da dramaturgia é trazer o que eu estou chamando de presença. O espetáculo pode acabar sendo uma forma de despertar a curiosidade das pessoas, para que possam descobrir a história dessas artistas e para que elas passem, como consequência, a serem cada vez mais lembradas e, certamente, nunca mais esquecidas; como a história de muitas pessoas na nossa área artística, de muitos artistas que diversas vezes são silenciados ou passam por situações de apagamento”, citou Louro.
Uma atriz narradora, interpretada por Fiama Eloisa, conduz a plateia através das histórias das cantoras negras brasileiras, seguindo o roteiro todo musicalizado com as vozes do coro cênico embalando essas trajetórias, histórias de vida e de morte, lutas e desafios do povo preto desde os tempos da escravidão. O espetáculo conta também com a participação especial de Peter Levi, bailarino preto e carioca integrante da Cia Ballet de Londrina (Funcart).
O navio das partidas
As velas de um navio foram o ponto de partida para a cenografia, idealizada pelo premiado cenógrafo Gelson Amaral e acompanhada por todos os participantes do Laboratório de Cenografica & Cenotécnica, projeto aprovado pelo PROMIC. “Um dos pontos importantes desse nosso projeto era firmar parceria com outras propostas realizáveis para que os alunos entendessem o dia-a-dia da construção de uma cenografia e da cenotécnica”, afirmou.
O cenário foi criado a partir da ideia da partida, dessa viagem sem volta dos escravizados, sequestrados em seus países de origem e levados para outras terras de navio. “A obra também fala dessas cinco cantoras líricas pretas que dentro de um universo meritocraticamente branco, ocidental, europeu, tiveram que ir embora para outros lugares para serem reconhecidas como tais. Então, de novo, vem a ideia da partida do navio que leva essas pessoas para outros lugares, para que elas tenham reconhecimento. O cenário parte dessa ideia da viagem, do ir embora”, comenta Amaral.
Para os figurinos, a pesquisa partiu de uma cartela de cores recorrentes nas bandeiras dos países africanos. As estampas são de tecidos africanos e a ideia foi que as peças também pudessem ser fáceis e práticas de vestir em cena.
Texto: Janaína Ávila – Assessoria de Imprensa
Fonte: Blog Londrina