Servidoras também evidenciam fortalecimento de ótica prisional em detrimento da ressocialização dos adolescentes, ferindo ECA
Trabalhadoras dos Centros de Socioeducação (espaços de atendimento a adolescentes em cumprimento de medida judicial) procuraram o Portal Verdade para denunciar a falta de isonomia entre os funcionários. Os relatos enunciam o machismo entre os agentes no desenvolvimento das funções diárias à administração que não reconhece direitos na mesma proporcionalidade. As queixas partem de servidoras lotadas em diferentes regiões do estado que preferiram não se identificar por medo de sofrerem perseguição e represálias.
As Unidades Socioeducativas do Estado do Paraná estão vinculadas à Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania (SEJU) e são geridas pela Coordenação Geral da Socioeducação. O Quadro de Servidores da Socioeducação integra o Quadro Próprio do Poder Executivo (QPPE). Os profissionais da comunidade socioeducativa lotados na Secretaria de Justiça e Cidadania são: agentes de execução, agentes profissionais e agentes de apoio.
Ana, atua no programa há mais de uma década e compartilha que desde o início percebia as divisões, preconceitos, desmerecimentos e piadas que ocorriam e ainda ocorrem entre agentes de segurança, sobretudo, homens em relação aos outros atores socieducativos que compõem a equipe multidisciplinar, sendo eles: agentes de segurança mulheres e agentes profissionais nas funções de psicólogo, assistente social, pedagogo, terapeuta ocupacional, professores, técnicos administrativos e agentes de apoio nas figuras de motoristas e auxiliar de manutenção, e por fim, a equipe de saúde como um todo.
“Quando falo em divisões, preconceitos e desmerecimentos; são falas preconceituosas no sentido de que as mulheres ficam inventando atividades diferenciadas só para dar trabalho para os agentes em ter que movimentar adolescentes, que as agentes ficam só no setor do P1 [um dos setores de serviço] fazendo nada, que a técnica administrativa não faz nada, que ‘esse povo do expediente não é importante, pois quem carrega a unidade somos nós (agentes), que as agentes são protegidas da direção e ficam inventando atividades pra não ter que fazer suas funções de agentes, que a equipe de saúde fica dramatizando a saúde dos adolescentes e com isso é mais trabalho para eles (agentes)’, aponta.
“Existem “conversas nas entrelinhas” entre os agentes homens de que esse povo da equipe técnica, administrativo, apoio e saúde fica nessa choradeira querendo os nossos direitos de aposentadoria integral mas não merecem, porque só os agentes é que são a socioeducação eles é que carregam as unidades; que é “bom esse povo saber que não merecem receber adicional nenhum” e ainda “esse povo (equipe multidisciplinar) já ganha melhor que a gente (agentes) e por isso não merecem ter adicional nenhum”, acrescenta.
No último dia 8 de dezembro, a gestão Ratinho Júnior (PSD) assinou os decretos nº 4.333 e nº 4.334, referentes à composição salarial dos agentes de segurança vinculados ao Sistema de Atendimento Socioeducativo do Paraná. Entre as mudanças está a transformação da Gratificação de Atividade Intramuros (GADI), de caráter transitório, em Adicional de Atividade Socioeducativa (AAS), com caráter permanente, com valor base de R$ 2.877,66.
A medida contempla 885 agentes de segurança socioeducativos, cerca de 77% dos servidores do Sistema de Atendimento Socioeducativo. Porém, mais de 330 servidores do Socioeducação não foram contemplados pelo benefício.
“Foi dado aos agentes a incorporação na gratificação intramuros e para nós, não. São vários argumentos e todos destoam, que eles seriam os únicos beneficiados porque são as únicas carreiras que não podem se mover no estado, isso é uma falácia, porque também não podemos mudar para outra secretaria, isso é raro. Na verdade, o que eu vejo é que o grupo de agentes contemplam quase 800 pessoas, majoritariamente masculino, e que reforça este ideário da segurança”, diz Maria.
Adoecimento
Ana ressalta que trabalhar em unidades de privação de liberdade para adolescentes por si só já é “pesado” emocionalmente, contudo, com os preconceitos sofridos diariamente, tem se sentido adoecida e desmotivada. Ela também destaca a falta de mulheres em postos de comando, sendo estas consideradas “acessórios” pelos agentes de segurança. Ainda, aponta o fortalecimento da precarização do trabalho a partir do beneficiamento de apenas um segmento.
“Para tentar me preservar me fecho na minha sala, realizo minhas atividades e procuro interagir o mínimo possível com alguns agentes; e quando falo agentes inclua-se diretor e vice diretor que também são agentes e ao menos aqui, tratam os servidores e funcionários com diversas réguas (o velho ditado 10 pesos e 200 medidas). Sinto que estou numa secretaria que se diz de Justiça, mas que se encarrega de dividir e segregar os servidores, não há uma luta por melhoria para todos, quando se trata de algum avanço somente agentes são merecedores; e quando a Socioeducação do Paraná é premiada somos todos uma equipe. Que equipe é essa que garante direitos a agentes e trata os demais como não pertencentes?”, questiona.
Plano de carreira
Segundo Ana, a luta pela aprovação do plano de carreira da categoria tem sido travada, principalmente, pelos “333 excluídos” (não contemplados pela Gratificação de Atividade Intramuros) que de antemão tiveram de reivindicar o pagamento de vale-alimentação, negado em primeiro momento. “Nos foi dito que não tínhamos direito porque não éramos Socioeducação. Hora todos estamos trabalhando intramuros, sujeitos aos mesmos ricos desde a nomeação, todos trabalhamos durante a pandemia”, desabafa.
A expectativa é que a proposta seja encaminhada até dezembro de 2024, mas de acordo com a profissional, o grupo tem encontrado dificuldades até mesmo para obter mais informações sobre o andamento do plano. A principal reivindicação é o tratamento igualitário entre os trabalhadores.
“Percebo que as chefias dentro da nossa secretaria que a princípio se mostraram receptivos e solidários a nossa causa, nada fizeram, e se quer temos acesso a conhecer os encaminhamentos que fizeram do plano de carreira se é que o fizeram. A secretaria se serve de um argumento vazio de que as demais funções com exceção dos agentes podem trabalhar em qualquer secretaria e portanto não devem ter o mesmo tratamento dos agentes quanto as garantias de direitos. Porém se esquecem de verificar que todos os demais profissionais que trabalham intramuros estão altamente preparados e treinados para exercerem suas funções de forma peculiar na Socioeducação, transando-se de mão de obra de excelência no fazer Socioeducativo e que aqui sempre trabalharam”.
Dificuldades para garantia de direitos dentro das unidades e reinserção social
Tanto o Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo como a Secretaria da Justiça e Cidadania devem seguir a Lei nº 8.069 – Estatuto da Criança e Adolescente (ECA); Lei nº 8.242 – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e Lei nº 12.594, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
O SINASE é uma política pública destinada à promoção, proteção e defesa dos direitos de adolescentes e jovens responsabilizadas pela prática de ato infracional. Ainda, procura contribuir para a reinserção social de menores em conflito com a lei.
“Acho que um dos nossos maiores desafios é ter de fato uma política de socioeducação, de contemplar o SINASE. Nossas unidades estão sem cursos profissionalizantes que é um direito que está no ECA, não tem esporte, apenas educação física que não são todos os meninos que fazem, não temos lazer para nossos meninos. O grande sacrifico é promover junto a sociedade o que o estado não provê. Fora as dificuldades, que a gente encontra na inserção do adolescente no mercado de trabalho”, adverte Maria.
A trabalhadora também chama atenção para o fortalecimento da ótica prisional dentro das unidades socioeducativas contrariando, portanto, preceitos do SINASE e ECA. “A segurança é um dos pilares do sistema socioeducativo, mas sozinha fere as leis que regem o atendimento à adolescentes em conflito com a lei”, diz.
Um dos preceitos da medida socioeducativa é o caráter interdisciplinar, ou seja, a promoção a oferta de atividades escolares, esportivas, profissionalizantes, culturais, lazer, atendimentos médicos, visitas familiares, atendimento individual, dentre outras garantias contidas no ECA.
Tais ações devem obrigatoriamente ser prestadas por uma equipe multiprofissional, ou seja, o grupo de atendimento é parte fundamental de todo o trabalho socioeducativo realizado com os adolescentes, não se restringindo apenas à segurança dos adolescentes e servidores, contemplando prioritariamente a preservação da integridade física e psicológica dos socioeducandos, bem como a efetivação de todas as ações necessárias para a sua reinserção social.
“O maior receio é retomarem práticas violentas contra nossos adolescentes que já foram superadas dentro dos Censes [Centros de Socioeducação], mas que hoje estamos presenciando passos largos de retrocesso. O que lutamos é que a Socioeducação promova, de fato, valores, reflexões sobre vida, responsabilização do ato cometido, oportunidades de inclusão social e de olhar esse jovem como um todo, seus sonhos e sua vida aquém do que o trouxe a privação de liberdade. Socioeducação é um sistema e o beneficiamento de um grupo desorganiza todo o trabalho, causa mortificação dos demais atores não contemplados e consequentemente causa damos irreparáveis aos jovens atendidos dentro deste contexto”, assinala Maria.
“A Socioeducação tem papel ímpar na sociedade, pois seu objetivo maior é atuar na transformação de cada adolescente autor de ato infracional, em um cidadão capaz e preparado para ser reinserido na sociedade, escolher e mudar para melhor o seu projeto de vida”, finaliza Ana.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.