Após tentativa de golpe em 8 de janeiro, Brasil luta por sua democracia: mas 1/4 dos brasileiros não se importam com ela
Foram sete dias de paz depois da posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2023. No oitavo, como sabemos, uma horda de vândalos invadiu a Praça dos Três Poderes, em Brasília, deixando um rastro de destruição e de alerta. O 8 de janeiro de 2023 foi o ápice de uma desconstrução programada da democracia brasileira, perpetrada com método pela extrema-direita bolsonarista. As instituições balançaram, mas resistiram ao ataque. No entanto, as cicatrizes ficaram e ainda não fecharam totalmente.
Um dos resultados deste esgarçamento do tecido democrático no país pode ser observado na recente pesquisa Datafolha, divulgada nesta semana, segundo a qual 7% dos brasileiros preferem uma ditadura ao regime democrático. Para outros 15%, é indiferente viver em uma autocracia ou em uma democracia: são 22% de descrentes em um sistema quye, apesar de repleto de problemas, é melhor do que todos os demais já implementados pelo ser humano.
Para efeito de comparação, 7% também acreditam que a Terra é plana, segundo o último levantamento do instituto sobre o assunto. Não se pode inferir que os que são a favor da ditadura também são terraplanistas, mas em ambos os casos temos a importância da educação para evitar que oportunistas manipulem a ignorância de outros milhões.
Uma educação que ensine o básico da ciência reduz a quantidade daqueles que acreditam que o mundo tem borda. Enquanto 10% dos que terminaram apenas o ensino fundamental afirmavam que a Terra é plana, segundo o Datafolha, a taxa entre os que concluíram o ensino médio era de 6%, e o superior, 3%.
O mesmo ocorre com o ensino de história, que tem o poder de diminuir a quantidade daqueles que endeusam governos autoritários porque desconhecem a sua natureza e seus efeitos. Diminuir, claro, não zerar, porque há muita gente que ganha dinheiro se associando com quem tenta golpes de estado – haja vista o linchamento da democracia no grupo de WhatsApp de ricos empresários bolsonaristas durante as eleições.
Esses números parecem vistosos, bom para político bater no peito e dizer que o país não aceita aventuras autoritárias. Mas tão preocupante quanto os 7% que se colocam pró-ditadura são os 15% que afirmam que tanto faz (o que pode ser uma variação envergonhada daqueles que torcem o nariz para a democracia ou que desconhecem mesmo o que é um ou outro). Somam-se a eles os 4% que não sabem. Isso dá 26%, mais de um em cada quatro brasileiros. Ou seja, 52,7 milhões.
Para além disso, é um tanto quanto perigoso afirmar que os 74% que dizem apoiar a democracia colocam isso de fato em prática. Sim, esse número precisa ser relativizado, pois há quem abrace governantes autoritários achando que está louvando democratas.
No grupo de zap supracitado, por exemplo, bolsonaristas acusavam pessoas de serem autoritárias simplesmente porque se colocavam contra aos atos golpistas de Jair.
Não foram os únicos. Entre os que participaram dos atos golpistas de 8 de janeiro, invadindo e vandalizando as sedes dos Três Poderes, em Brasília, muitos acreditavam estar em uma revolução para impedir um governo ditatorial chegar ao poder e garantir a permanência do democrata. Não percebiam que estavam, pelo contrário, agindo como golpistas para que a vontade da maioria nas urnas fosse subjugada às necessidades de um autocrata.
É isso o que acontece quando um grupo é bombardeado por ficção monotemática produzida por seus líderes e não pelo conjunto plural do debate público que inclui atores da ciência, do jornalismo, da política, da economia, da sociedade, cheia de contraditórios e entretantos.
Passamos tanto tempo nos preocupando em garantir que os mais jovens decorassem datas de “descobrimentos” e locais de batalhas que não fomentamos o pensamento crítico. Pior: o ensino de história tem sido sistematicamente atacado por aqueles que desejam reescrever a história do Brasil sob sua imagem e semelhança. Para tanto, lutam para que a escola seja o local da decoreba, não do debate e da discussão. “Escola sem Cérebro”, para ser mais exato.
Precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você saiba a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não um debate que esclareça porque o 13 de maio de 1888 não garantiu liberdade e autonomia aos negros e negras deste país. Ou que defendam que a criança aprenda que a Segunda Guerra Mundial começou quando a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclama se professores discutem em sala sobre o que pregavam os capitalistas, socialistas e nazistas envolvidos no conflito.
Precisamos que a História da ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, seja conhecida e discutida nas escolas a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente. E de forma que aqueles 74% possam passar de 90%.
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões que eles queriam impor. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos. A Alemanha “purificou pelo fogo” as “ideias imundas deles”, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.
Hoje, as fogueiras e as praças são virtuais. Mas queimam da mesma forma.
Maiores e menores patamares da história
É a primeira pesquisa a esse respeito desde os atos antidemocráticos do 8 de Janeiro. O patamar de apoio à democracia é auferido pelo instituto desde 1989 e havia atingido a máxima histórica em outubro do ano passado, com 79% de adeptos de um regime democrático.
O menor índice da série histórica se deu em fevereiro de 1992. Naquele momento, o então presidente Fernando Collor de Mello enfrentava uma crise política e institucional sem precedentes e a confiança na democracia como regime de governo recuou para 42%. Em setembro daquele ano, o apoio à ditadura atingiu o maior patamar histórico na pesquisa, com 23%, e em dezembro Collor renunciou em meio a um processo de impeachment.
Foram sete dias de paz depois da posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2023. No oitavo, como sabemos, uma horda de vândalos invadiu a Praça dos Três Poderes, em Brasília, deixando um rastro de destruição e de alerta. O 8 de janeiro de 2023 foi o ápice de uma desconstrução programada da democracia brasileira, perpetrada com método pela extrema-direita bolsonarista. As instituições balançaram, mas resistiram ao ataque. No entanto, as cicatrizes ficaram e ainda não fecharam totalmente.
Um dos resultados deste esgarçamento do tecido democrático no país pode ser observado na recente pesquisa Datafolha, divulgada nesta semana, segundo a qual 7% dos brasileiros preferem uma ditadura ao regime democrático. Para outros 15%, é indiferente viver em uma autocracia ou em uma democracia: são 22% de descrentes em um sistema quye, apesar de repleto de problemas, é melhor do que todos os demais já implementados pelo ser humano.
Para efeito de comparação, 7% também acreditam que a Terra é plana, segundo o último levantamento do instituto sobre o assunto. Não se pode inferir que os que são a favor da ditadura também são terraplanistas, mas em ambos os casos temos a importância da educação para evitar que oportunistas manipulem a ignorância de outros milhões.
Uma educação que ensine o básico da ciência reduz a quantidade daqueles que acreditam que o mundo tem borda. Enquanto 10% dos que terminaram apenas o ensino fundamental afirmavam que a Terra é plana, segundo o Datafolha, a taxa entre os que concluíram o ensino médio era de 6%, e o superior, 3%.
O mesmo ocorre com o ensino de história, que tem o poder de diminuir a quantidade daqueles que endeusam governos autoritários porque desconhecem a sua natureza e seus efeitos. Diminuir, claro, não zerar, porque há muita gente que ganha dinheiro se associando com quem tenta golpes de estado – haja vista o linchamento da democracia no grupo de WhatsApp de ricos empresários bolsonaristas durante as eleições.
Esses números parecem vistosos, bom para político bater no peito e dizer que o país não aceita aventuras autoritárias. Mas tão preocupante quanto os 7% que se colocam pró-ditadura são os 15% que afirmam que tanto faz (o que pode ser uma variação envergonhada daqueles que torcem o nariz para a democracia ou que desconhecem mesmo o que é um ou outro). Somam-se a eles os 4% que não sabem. Isso dá 26%, mais de um em cada quatro brasileiros. Ou seja, 52,7 milhões.
Para além disso, é um tanto quanto perigoso afirmar que os 74% que dizem apoiar a democracia colocam isso de fato em prática. Sim, esse número precisa ser relativizado, pois há quem abrace governantes autoritários achando que está louvando democratas.
No grupo de zap supracitado, por exemplo, bolsonaristas acusavam pessoas de serem autoritárias simplesmente porque se colocavam contra aos atos golpistas de Jair.
Não foram os únicos. Entre os que participaram dos atos golpistas de 8 de janeiro, invadindo e vandalizando as sedes dos Três Poderes, em Brasília, muitos acreditavam estar em uma revolução para impedir um governo ditatorial chegar ao poder e garantir a permanência do democrata. Não percebiam que estavam, pelo contrário, agindo como golpistas para que a vontade da maioria nas urnas fosse subjugada às necessidades de um autocrata.
É isso o que acontece quando um grupo é bombardeado por ficção monotemática produzida por seus líderes e não pelo conjunto plural do debate público que inclui atores da ciência, do jornalismo, da política, da economia, da sociedade, cheia de contraditórios e entretantos.
Passamos tanto tempo nos preocupando em garantir que os mais jovens decorassem datas de “descobrimentos” e locais de batalhas que não fomentamos o pensamento crítico. Pior: o ensino de história tem sido sistematicamente atacado por aqueles que desejam reescrever a história do Brasil sob sua imagem e semelhança. Para tanto, lutam para que a escola seja o local da decoreba, não do debate e da discussão. “Escola sem Cérebro”, para ser mais exato.
Precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você saiba a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não um debate que esclareça porque o 13 de maio de 1888 não garantiu liberdade e autonomia aos negros e negras deste país. Ou que defendam que a criança aprenda que a Segunda Guerra Mundial começou quando a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclama se professores discutem em sala sobre o que pregavam os capitalistas, socialistas e nazistas envolvidos no conflito.
Precisamos que a História da ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, seja conhecida e discutida nas escolas a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente. E de forma que aqueles 74% possam passar de 90%.
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões que eles queriam impor. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos. A Alemanha “purificou pelo fogo” as “ideias imundas deles”, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.
Hoje, as fogueiras e as praças são virtuais. Mas queimam da mesma forma.
Maiores e menores patamares da história
É a primeira pesquisa a esse respeito desde os atos antidemocráticos do 8 de Janeiro. O patamar de apoio à democracia é auferido pelo instituto desde 1989 e havia atingido a máxima histórica em outubro do ano passado, com 79% de adeptos de um regime democrático.
O menor índice da série histórica se deu em fevereiro de 1992. Naquele momento, o então presidente Fernando Collor de Mello enfrentava uma crise política e institucional sem precedentes e a confiança na democracia como regime de governo recuou para 42%. Em setembro daquele ano, o apoio à ditadura atingiu o maior patamar histórico na pesquisa, com 23%, e em dezembro Collor renunciou em meio a um processo de impeachment.
Lula anuncia ato para marcar um ano do 8 de janeiro
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou na quarta-feira (20) que vai realizar um ato no dia 8 de janeiro de 2024 junto com os presidentes dos outros Poderes para marcar um ano da tentativa de golpe contra a democracia.
O anuncio foi feito durante a última reunião ministerial do ano, realizada no Palácio do Planalto. Estiveram presentes todos os 38 ministros do governo. No evento, ele pediu que todos os titulares das pastas participem do ato. A atividade terá ainda a participação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso. Segundo divulgou a assessoria de imprensa do STF, Barroso confirmou a Lula a participação no ato durante o jantar organizado pelo presidente do STF ontem em Brasília, com a presença de Lula e dos ministros do Supremo.
“Nós estamos convidando um ato para lembrar a tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro”, disse Lula. “O ato está sendo convocado por mim, pelo presidente do Senado, pelo presidente da Câmara e pelo presidente da Suprema Corte – o Flávio Dino está preparando para saber qual plenário a gente vai fazer. E quero lembrar os companheiros e companheiras ministras: ninguém está pedindo para não viajarem, mas eu quero a presença de todos os ministros e ministras no dia 8 de janeiro, aqui, deve ser na Câmara ou no Senado”, afirmou Lula, que não deu mais detalhes sobre como será o ato.
O presidente, que vai fazer uma pausa em sua agenda entre os dias 26 de dezembro e três de janeiro, ainda aproveitou a última reunião do ano para se despedir de Flávio Dino, que foi indicado para o Supremo Tribunal Federal, mas ainda segue no Ministério da Justiça até tomar posse na corte, o que deve ocorrer somente em fevereiro, quando os ministros voltarem do recesso.
Para relembrar e não esquecer
Em 8 de janeiro de 2023 milhares de manifestantes golpistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro que estavam acampados em frente ao Quartel General do Exército em Brasília desceram para a Praça dos Três Poderes para protestar contra a eleição de Lula e pedir, dentre outras pautas, um golpe militar. No ato, que também reuniu manifestantes vindos de diferentes cidades do país, foram depredadas as sedes dos três Poderes.
O episódio contou com a anuência de Policiais Militares do DF e outras forças de segurança. A tentativa de golpe marcou o início do governo Lula e fez com que os três Poderes organizassem uma dura resposta aos manifestantes, que foram presos no dia segu
inte por ordem do ministro do STF, Alexandre de Moraes. Desde então, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal vêm investigando e denunciando à Justiça os participantes dos atos golpistas, que foram inflamados por políticos e empresários aliados de Bolsonaro.
Após os ataques, o presidente Lula e os presidentes dos Três Poderes se reuniram na Praça dos Três Poderes e caminharam da Esplanada dos Ministérios até a sede do Supremo Tribunal Federal, em um ato simbólico para demonstrar união. Agora, Lula deve querer repetir o gesto simbólico um ano após a data.
O primeiro ano do governo Lula sob análise
O atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa na próxima semana seu primeiro ano, marcado pela aprovação de importantes reformas econômicas apesar de tensões com um Congresso mais alinhado à direita, redução do desmatamento na Amazônia e um esforço para reinserir o Brasil na arena internacional, algumas vezes sem resultados práticos.
Entre as medidas aprovadas no Congresso, destacam-se o novo arcabouço fiscal, que substituiu o teto de gastos e estabeleceu um norte para as contas públicas, e a reforma tributária, que vinha sendo debatida há três décadas e tem potencial para estimular o crescimento. Na economia, o ano chega ao fim com queda do desemprego e da inflação, um desempenho PIB melhor que o projetado e trajetória de queda dos juros.
No meio ambiente, o descontrole contra o desmatamento e o garimpo ilegal na Amazônia favorecidos durante a gestão Jair Bolsonaro foi revertido. O país voltou a ser um protagonista internacional no tema, mas também foi alvo de críticas como ao aumento do desmatamento no Cerrado e à aproximação com a Opep, entidade que reúne países exploradores de petróleo no mundo.
Lula também investiu muito tempo e energia no primeiro ano do governo à política internacional, visitando 24 países e passando 75 dias no exterior, com o objetivo de romper o isolamento do Brasil ocorrido durante a gestão Bolsonaro. Em alguns momentos, as movimentações de Lula provocaram conflitos com EUA e União Europeia, sobretudo por declarações sobre a guerra na Ucrânia, sem gerar resultados concretos. Em dezembro o Brasil assumiu a presidência rotativa do G20, o grupo das maiores economias do mundo, o que deve servir para ampliar sua projeção global.
Popularidade mediana
No início de dezembro, Lula tinha seu governo avaliado como bom ou ótimo por 38% da população, segundo pesquisas do Datafolha e do Ipec, uma taxa que permaneceu estável ao longo do ano. A avaliação positiva de Lula é similar à do governo Bolsonaro em dezembro de 2022, quando o então presidente era avaliado como ótimo e bom por 39% da população.
A reprovação de Lula, porém, é menor – o petista tem seu governo avaliado como ruim ou péssimo por 30% da população, enquanto 38% assim avaliavam o governo de Bolsonaro em dezembro passado.
No final do seu mandato anterior como presidente, em dezembro de 2010, Lula tinha sua gestão avaliada como ótima ou boa por 83% dos brasileiros, enquanto apenas 4% o consideravam ruim e péssimo – um recorde na série histórica, e algo que seria inviável no atual contexto de polarização aguda, avalia à DW Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp.
“Atualmente a aprovação de um governo raramente ultrapassa os 40%. Esse percentual do Lula é o novo normal na divisão política global, que também acontece no Brasil, baseado na divisão entre projetos em que um deles não tem como pressuposto a democracia”, diz.
Relação instável com Congresso
Para voltar ao Planalto, Lula montou uma ampla coalizão com partidos de centro e centro-direita, e sua vitória coincidiu com a eleição de um Congresso mais conservador do que o da legislatura anterior. De forma pragmática, o petista apoiou a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) como presidente da Câmara, a fim de tentar construir uma bancada sólida na Casa.
“Ficou claro que o Executivo seria refém do Legislativo, algo que se mantém até agora”, avalia Nobre. Lula construiu uma coalizão, mas tem uma maioria incerta, construída a cada votação em negociações com o que Nobre chama de “Centrão sem medo” – um bloco significativo de partidos que não tem receio de fazer alianças com a extrema direita, mas que também compõe o atual governo.
Para atrair siglas mais distantes, Lula entregou ministérios e cargos para PP, Republicanos e União Brasil, mas a relação não foi fácil ao longo do ano, em boa medida por causa da estratégia adotada por esses partidos. “Como se dá a negociação com o Centrão: o bloco aceita os cargos, as verbas, mas não apoia o governo. Os líderes dos partidos desse triunvirato já explicitaram que não são o governo e muitas vezes até dizem que são oposição”, explica Nobre.
O União Brasil, que tem dois ministérios no governo – Juscelino Filho nas Comunicações e Celso Sabino no Turismo – mantém dois vice-líderes na oposição dentro da Câmara. No mês passado, o jornal O Globo mostrou que a sigla pretende ir mais à direita a partir do ano que vem, sem se descolar do governo em pautas específicas, sobretudo na agenda econômica.
“A percepção de que as coisas estavam funcionando dessa forma demorou para acontecer no governo e se arrastou ao longo do ano. O resultado é que o Executivo continua sem maioria e com uma base restrita. Neste cenário, Lula não consegue liderar e, portanto, ainda não é possível ter clareza sobre qual é o plano de governo. O Congresso tem uma agenda própria e não dá para dizer que o PT lidera de fato”, diz Nobre.
Desempenho positivo na economia
Sem uma base sólida no Congresso, focos programáticos de atuação ganharam atenção especial do governo, em especial sob a liderança do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em outubro do ano passado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) havia previsto que a economia brasileira estaria em desaceleração e com crescimento de apenas 1% em 2023.
Mas o ano está terminando diferente e com certo otimismo. O crescimento está próximo dos 3%, a taxa de desemprego está abaixo dos 8%, algo que não acontecia desde agosto de 2014, e o número de trabalhadores com carteira assinada no país atingiu o maior índice desde janeiro de 2015, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em novembro.
Os números positivos da economia se juntaram a uma série de medidas aprovadas no Congresso, como o arcabouço fiscal, a tributação de fundos exclusivos e a reforma tributária. “A reforma tributária foi algo histórico e extraordinário para o país. Não é trivial”, diz Nobre.
“Ele (Haddad) conseguiu contrariar as expectativas e acalmar os ânimos da Faria Lima contra sua escolha. Ele era visto como alguém não confiável, mas mostrou interlocução com o mercado financeiro e Congresso. A verdade é que a aprovação da reforma tributária é uma vitória do Haddad. É um projeto que está há 30 anos no Congresso e agora avançou”, avaliou Marcelo Kfoury, professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
Para Nobre, os percalços do governo na relação com o Congresso ainda podem impactar a economia, apesar dos avanços neste ano. “Como fazer um projeto de médio e longo prazo, como por exemplo a transição energética, sem um plano claro de governo e com a articulação política nesse estágio? Isso não é a pauta de um único ministério, mas de vários.”
Avanços no meio ambiente
O diálogo entre Lula e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, nem sempre foi convergente. Ao longo do ano, a pasta perdeu poderes ao ser alijada da administração do Cadastro Ambiental Rural, transferida para o ministério da Gestão e Inovação, e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, que passou à Integração Nacional.
Em compensação, Marina liderou o relançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, programa criado por ela em 2004, durante a primeira gestão petista, e extinto em 2019 por Bolsonaro.
Outro ponto importante foi o Plano de Transformação Ecológica apresentado em novembro pela ministra em parceria com Haddad, com seis eixos: finanças sustentáveis, economia circular, adensamento tecnológico, bioeconomia, transição energética e adaptação à mudança do clima.
“A questão ambiental ganhou uma importância, uma centralidade inédita na agenda pública brasileira, como nunca tivera. Ganhou mais espaço ainda na agenda da política externa brasileira, que aspira a colocar o Brasil como protagonista importante das negociações internacionais sobre clima, transição energética e proteção da biodiversidade”, diz a cientista política Maria Hermínia Tavares, pesquisadora do Cebrap e professora aposentada da USP.
“Não só o governo está reconstruindo capacidades estatais e instrumentos muito enfraquecidos durante o governo Bolsonaro – com algum êxito em termos da redução do desmatamento – mas foi adiante com o ambicioso Plano de Transição Ecológica, inspirado no Green New Deal europeu e no Inflation Act norte-americano”, complementa.
Pedro Luiz Cortês, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, afirma que os dados sobre a queda do desmatamento são animadores. “Ao compararmos o desmatamento ocorrido em 2022 com aquele verificado em 2023, temos uma redução de 52% na área desmatada neste ano. É preciso celebrar isso.”
Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, celebra os avanços, mas tem ressalvas. Ele elogiou a captação de mais recursos para o Fundo Amazônia, mas questionou a entrada do Brasil na Opep+, grupo de membros associados à Opep que participam da discussão de políticas internacionais para o setor petrolífero.
“A proximidade com o cartel internacional de petróleo vai contra o DNA ecológico do Brasil e a imperiosa necessidade de eliminação dos combustíveis fósseis. Significa que o Brasil está optando por trilhar caminhos da velha economia fóssil do século 20”, disse. Para 2024, Bocuhy afirma que o governo deveria buscar a redução do desmatamento na Amazônia e no Cerrado e o combate à desertificação da Caatinga e à savanização da Amazônia. “Além de garantir proteção aos mais vulneráveis em meio às mudanças climáticas.”
Política externa ativa
Ao longo do primeiro ano de mandato, Lula esteve em 24 países, incluindo EUA, Emirados Árabes Unidos, Cabo Verde, China e Índia. No fim de novembro, esteve na Alemanha, onde a última visita de um presidente brasileiro ao país havia sido em 2015, com Dilma Rousseff.
“Bolsonaro foi isolacionista e o Lula tenta devolver ao Brasil um protagonismo que ele teve durante seus dois primeiros governos. Isso quer dizer participar de fóruns internacionais, conseguir construir ideias, sugestões de negociações e obter benefícios diversos para os países do Sul Global”, avalia Miriam Saraiva, professora de relações internacionais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
A conjuntura internacional esteve na agenda brasileira, com a guerra na Ucrânia o conflito entre Israel e Hamas. Em abril, Lula afirmou que Rússia e Ucrânia eram culpadas pela guerra, e que EUA e União Europeia estariam atuando para prolongar o conflito. A declaração foi rebatida por representantes do governo norte-americano e da UE.
“A reação foi muito forte e dizendo basicamente que o Brasil não tinha nada a ver com isso. E os parceiros do Brics ficaram quietos. A China se manifestou somando à posição brasileira, mas Índia e África do Sul, não. Não obtivemos resultado nenhum”, analisa Saraiva.
No conflito entre Hamas e Israel, a professora da Uerj ressalta que o “Brasil está um pouco menos ativo”. “Houve críticas às violências nos ataques, aos atentados, atuou para ajudar os brasileiros e está focado em negociar e construir a paz. É uma atuação similar à de outras nações e da ONU, em busca do cessar-fogo.”
Maria Hermínia Tavares, da USP, ressalta haver duas visões distintas dentro do governo na promoção da política externa brasileira. A primeira acredita que o país deveria escolher os foros de atuação onde tem potencial para ser ouvido, colocando o foco na questão ambiental ou na redução da fome no mundo. A segunda entende o Brasil como potência emergente e, por isso, avalia que o país deve tratar de grandes temas mundiais, independentemente da sua capacidade efetiva de influir sobre o rumo e as saídas para elas.
“Creio que é mais proveitoso para o Brasil limitar-se às questões em relação às quais tem trunfos para se fazer ouvir. A tentativa de atuar no conflito entre Ucrânia e Rússia resulta daquela segunda visão do Brasil potência-emergente. Não deu muito certo, e não se falou mais nisso. No caso do ataque do Hamas à Israel e da invasão do exército israelense à Gaza, foi um pouco diferente. O presidente deu algumas declarações desinformadas e desastradas, mas, na verdade, o que o país fez foi usar sua competente diplomacia para proteger os brasileiros que estavam tanto em Israel como em Gaza”, disse.
Outro ponto de destaque é a presidência rotativa do G20, fórum de cooperação econômica internacional entre as principais nações do mundo, até dezembro do ano que vem. Tavares acredita que a oportunidade pode ser importante em avanços para o país, apesar das divergências.
“Penso que o Brasil tentará avançar em questões que permitam aos participantes avançar em conjunto. O Brasil nunca se alinhará completamente aos Estados Unidos e União Europeia, e acho que esses países sabem disso. Mas, acho também que tratará de colocar o foco nos pontos de convergência. Se não o fizer, perderá uma oportunidade importante de se apresentar como protagonista confiável.”
No acordo entre União Europeia e Mercosul, Lula não conseguiu destravar as desavenças entre os dois blocos. “Os países europeus foram muito ativos na eleição do Lula, mas isso não se desdobrou na assinatura do acordo que se arrasta desde 2019, especialmente pela atuação da França. É difícil saber o que vai acontecer a partir de agora”, pondera Saraiva.
A questão militar
Lula iniciou seu governo enfrentando uma tentativa de golpe. O 8 de janeiro expôs a relação tensa do novo governo com parte das Forças Armadas, questionadas por não atuarem na contenção do golpistas que atacaram a Praça dos Três Poderes. A situação acirrou uma relação tensa desde a campanha presidencial, quando Lula questionou a politização da caserna.
Depois dos atos golpistas, o general Júlio Cesar Arruda foi exonerado do comando do Exército com apenas 21 dias no cargo. Membros do governo questionaram a ação do Gabinete de Segurança Institucional, repleto de militares responsáveis pela segurança presidencial – até agosto, 362 militares foram exonerados do órgão, segundo a CNN Brasil.
O governo tem atuado para tentar limitar a presença dos militares na política, inclusive apoiando uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determina que o militar federal que se candidatar a um cargo eletivo seja automaticamente transferido para a reserva não remunerada. O texto aguarda análise do plenário do Senado.
“Se olharmos a história do país, em alguns momentos os militares se colocam como um Poder Moderador, algo como um quarto poder, e é isso que precisa ser evitado. É uma corrente subterrânea da história brasileira que não desaparece e que emerge às vezes no pior sentido possível. Em algum momento será necessário limitar isso de maneira firme”, diz Marcos Nobre.
Fonte: Semana On