Casos como o de Davi Gregório, de 15 anos, em Londrina, e de Eduardo Felipe, de 17, em Curitiba, integram estatística que cresce a cada ano no Estado
De 1º de janeiro de 2017 a 31 de dezembro de 2021, 185 menores de 18 anos morreram em ações das polícias no estado do Paraná. Os dados são do Ministério Público (MPPR). O número representa somente 11% das vítimas totais, mas causam ainda mais revolta em familiares e amigos por se tratarem de meninos tão jovens. Davi Gregório Ferraz dos Santos, 15 anos, entrou para as estatísticas no último dia 16 de junho, em uma ação da polícia militar divulgada como confronto, em Londrina. A família contesta a versão e pede justiça.
Em entrevista à Lume no dia 20 de junho, Marilene Ferraz da Silva Santos, mãe do adolescente, fez questionamentos: “Meu filho não tinha arma. Ele pode ter ido lá para adquirir droga, a gente não sabe. Meu marido diz que Davi não tem capacidade para empunhar uma arma. Também não tinha informação de tiros que ele tenha dado, atingiu quem?”.
A família acompanha as investigações e espera ter acesso aos documentos relativos à ação da polícia. O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, acompanha o caso.
“Gostaria que o advogado pudesse acompanhar para ter o laudo do perito, gostaria que ficasse provado que ele não tinha arma, não tinha pólvora na mão. Apesar de muito duro, quero detalhes do acontecimento, saber onde o corpo dele estava exatamente. Eu quando estive na beira do corpo dele, eu peguei no braço, eu não tenho certeza como estava o braço dele. Queria entender a faixa na mão. Saber porque a roupa dele foi incinerada, o celular onde está”, questiona a mãe.
Em Curitiba, a morte de Eduardo Felipe Santos de Oliveira, de 17 anos, no dia 6 de novembro de 2021, gerou protestos na comunidade Portelinha. Morto com diversos tiros dentro de uma residência, o rapaz teria sido baleado nas costas, segundo sua irmã mais velha, Jaqueline Santos de Oliveira.
“Discordamos do confronto por conhecermos o Eduardo. Não sei se concorda comigo, mas é impossível uma pessoa entrar em confronto com a polícia e levar tiros somente pelas costas. Eles tentaram sumir com a jaqueta que o Eduardo estava no dia, mas graças a Deus a jaqueta enroscou num galho de árvore que tinha embaixo da casa que ele foi executado”, conta.
A família acredita que a morte de Eduardo tenha relação com um fato anterior presenciado por ele. “Pra mim foi uma execução, pois em setembro o Eduardo presenciou a morte de outro jovem que morreu na comunidade. Ele me disse que os policiais enfregaram a cara dele no corpo do rapaz morto e disseram que se ele não se cuidasse poderia acontecer o mesmo com ele”, diz Jaqueline. “O que a família mais quer é justiça”.
Segundo o Gaeco, “os fatos ainda estão sendo apurados”. Teriam sido apreendidos na operação que resultou na morte de Eduardo um revólver e cocaína. A PM teria entrado na comunidade em dois horários sequentes, após comunicado de disparos de arma de fogo.
Nos últimos cinco anos o Paraná registrou 1.653 mortes em ações policiais. Destas, 87,5% foram de vítimas de até 35 anos, majoritariamente entre 18 e 25 anos (715 casos). Apenas 205 eram mais velhos. Nos casos envolvendo maiores também ocorre com frequência contestação da versão de confronto por parte das famílias. Os números crescem a cada ano e preocupam entidades do sistema de justiça.
Mortos “fora de confronto” em Londrina
Em Londrina ocorreram ao menos duas mortes por agentes de segurança, nos últimos anos, fora do contexto de supostos confrontos e que geraram intensa mobilização popular. São os casos de Matheus Evangelista e de Gabriel Sartori.
Matheus tinha 18 anos quando foi alvejado durante abordagem da Guarda Municipal em uma festa na Zona Norte da cidade. Condenado a mais de 18 anos pelo crime, o ex-GM Fernando Neves teve recurso de apelação negado pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná este mês.
Já o policial militar Bruno Zangirolami, que estava de folga quando disparou o tiro que vitimou Gabriel, de 17 anos, foi inocentado pelo Tribunal do Júri em fevereiro deste ano. Prevaleceu a tese de legítima defesa, embora Gabriel e os amigos não portassem armas. A família recorreu da decisão. Em entrevista recente à Lume, a mãe do adolescente, Cristiane Sartori, desabafou:
“Não importa como, a luta contra esta violência não pode parar, apesar de ser uma instituição difícil de lutar. Mas se nos calarmos, só tem a piorar”.
Entidades pedem formação em direitos humanos para a polícia
Em abril, concomitantemente à divulgação dos números de 2021 pelo Ministério Público do Paraná (MPPR), o próprio MP, aliado ao Tribunal de Justiça, à Procuradoria de Justiça, à Defensoria Pública, à Ordem dos Advogados do Brasil-Subseção Paraná e à Universidade Federal do Paraná (UFPR) redigiu ofício ao governador do Estado, Carlos Massa Ratinho Júnior, sugerindo duas medidas para o enfrentamento à violência e às mortes em ações policiais.
O documento prevê: a elaboração e execução de programa que, progressivamente, torne obrigatória a utilização de câmeras nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, e a estruturação de curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos para todo o Sistema de Justiça e as polícias Civil e Militar. Duas reuniões já ocorreram no MP para formatar o curso a ser ministrado nas escolas de formação e o objetivo é que a capacitação seja permanente.
“Em um primeiro momento recebemos, através de um questionário, as informações de cada uma das instituições sobre o que já tem sido feito em relação a esse tema dos direitos humanos. O que se identifica é que, claro, de uma maneira ou de outra, todas as instituições, em um dado momento, tratam do tema, mas o que se pretende não é esporadicamente se fazer um seminário, que não raras vezes é frequentado pelos agentes dessas instituições que já têm interesse na matéria. O que se pretende é um programa com profundidade, não só para formação, mas para capacitação permanente e continuada e que se envolva nesse contexto situações da realidade concreta”, explica o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto.
“Quando digo isso, para além dos conceitos, que são universais, o que se pretende é análise de situações concretas de discriminação, de preconceito. Não podemos afastar a possibilidade de discutir o racismo estrutural, de se discutir o tema dos direitos das mulheres, do enfrentamento à violência contra a mulher, do enfrentamento à violência contra a população LGBTQIA+”, exemplifica.
Sotto Maior estima que o curso seja formatado de forma célere e possa ser implementado já no próximo ano. Ele destaca a importância de capacitar, também, os agentes do sistema de justiça.
“Buscamos a superação de um ensino jurídico que, não raras vezes, se apresenta como função, como trabalho do operador de direito só de sistematizar e aplicar as normas jurídicas, sem fazer reflexão sobre o conteúdo ideológico, por quem foram feitas, como foram feitas. Acho que esse curso supera também uma deficiência dos próprios cursos de formação da área jurídica que não abordam de maneira aprofundada a questão dos direitos humanos”, opina.
Para o procurador, os crescentes números de mortos em ações policiais no Estado são reflexo da realidade brasileira. “Nós hoje experimentamos, no contexto da realidade brasileira, frequentemente discursos de ódio. Há, então, um discurso, propalado inclusive por autoridades públicas, de que ‘bandido bom é bandido morto’.”, pondera.
Sotto Maior acredita que a indicação para instalação de câmeras nas viaturas e uniformes das polícias pode vir a coibir abuso, além de proteger agentes que trabalham na legalidade. “Em São Paulo e Santa Catarina, onde já se utiliza essa possibilidade, houve um decréscimo significativo de casos de letalidade policial. O que a gente espera é que o governo do Estado venha a determinar a instalação das câmeras, porque interessa a todos”.
A Lume procurou a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) e aguarda retorno sobre o assunto.
Fonte: Cecília França – Rede Lume