Cenário atual do jogo político tem MPs como pautas de influência compartilhada entre Executivo e Legislativo
Com a abertura oficial do calendário legislativo nesta sexta-feira (1º) e a previsão de início das votações de 2024 para a próxima semana, 20 medidas provisórias (MPs) editadas pelo governo Lula aguardam avaliação por parte de deputados e senadores. A mais controversa delas é a MP 1202/2023, que reonera de forma gradual a folha de pagamento de 17 setores da economia, entre eles os de transporte, indústria e construção civil.
A gestão tenta ampliar a arrecadação e enfrenta dificuldades com lideranças partidárias e representantes dos segmentos em questão, que questionam a mudança. Um dos pontos mais controversos da MP é o que trata do fim de incentivos ao Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), que deve ajudar a incendiar os debates em torno da medida quando a pauta for votada. Nos bastidores de Brasília (DF), a leitura é de que a MP tende a cair ou pode ser reformatada após eventuais acordos entre os grupos políticos. É o que projeta o consultor e analista político Thiago Queiroz.
“Na retomada dos trabalhos, deverá ocorrer novamente um diálogo entre o Ministério da Fazenda e os presidentes das duas casas e os líderes parlamentares. A tendência natural ali seria um processo de negociação para que a questão da reoneração seja enviada [pelo Executivo ao Congresso] através de um projeto de lei. Mas é importante salientar que esse PL, naturalmente, sofrerá resistência no Congresso”, afirma Queiroz.
Ele acrescenta que a questão do Perse pode tomar outros rumos, a depender das costuras políticas. “Esse ponto eu acho factível que seja mantido dentro da própria MP ou através de alguma outra MP que trate especificamente desse benefício. Há uma resistência um pouco maior na Câmara dos Deputados, mas acho que tem espaço para se negociar.”
Outras medidas
Na lista das pautas que devem ser avaliadas pelos parlamentares está também a MP 1200, que libera mais de R$ 93 bilhões para o pagamento de precatórios, valores a serem quitados pelo Estado brasileiro a cidadãos que tenham vencido disputas judiciais definitivas e condenatórias para a União. Ela faz parte de uma lista de dez MPs que, juntas, liberam R$ 96 bilhões em créditos extraordinários para órgãos públicos do Executivo federal e que serão avaliadas pelo Congresso nos próximos meses.
Entre essas dez MPs, há sete que preveem um montante de R$ 1,9 bilhão para combater efeitos de desastres climáticos no país. É o caso da situação verificada no Rio Grande do Sul, que vive estado de calamidade desde setembro por conta de um ciclone que afetou duramente a população. Por isso, deve ser o destino das verbas de três MPs – MP 1188, MP 1190 e MP 1193 – que direcionam mais de R$ 955 milhões ao estado.
Figura ainda na lista do Congresso Nacional a MP 1197, que fixa o direcionamento de mais de R$ 879 milhões para os estados e o Distrito Federal como forma de compensar a redução que houve na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) no país. O rol de pautas a serem votadas também conta com, entre outras medidas, a MP 1198, que disponibiliza uma bolsa-permanência no Ensino Médio para alunos de baixa renda, e a MP 1199, que trata do programa Desenrola Brasil, cujo objetivo é renegociar dívidas de pessoas inadimplentes.
Cenário
O ano legislativo será iniciado sob o manto da desconfiança que marca o olhar de setores da direita diante do governo após a edição da MP da reoneração, que acabou gerando sobressaltos entre lideranças do Congresso durante o período de recesso. Apesar disso, para o analista Thiago Queiroz, não há traumas na relação entre ambas as partes por conta da edição da medida.
“Não vejo fratura. É que o presidencialismo que a gente estava acostumado a ver, o chamado ‘presidencialismo de coalizão’, foi bastante mitigado ao longo do tempo em razão da força e do protagonismo que o Congresso acabou exercendo na disputa sobre o orçamento. Então, hoje ele é menos dependente de uma negociação com o governo para participar da máquina pública. Dentro desse novo processo, é natural que haja alguns solavancos. Daqui para frente acho que a gente deve identificar isso com alguma frequência.”
Considerando esse cenário, o professor Lúcio Rennó, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol-UnB), chama a atenção para as diferentes alterações que ocorreram ao longo do tempo no jogo político entre Executivo e Legislativo em torno da votação de uma MP. Um dos destaques se deu durante a pandemia, quando uma reforma permitiu a adoção de um rito sumário que enxugou as fases de tramitação e permitiu que os textos fossem votados diretamente em plenário, ou seja, sem passar pela avaliação das comissões legislativas.
Em busca de maior poder, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), tem sido o principal defensor de formatos do tipo e também de modelos que ampliem a participação e a influência da Casa em relação ao poder do Senado no jogo. Com o tempo, essa queda de braço acabou desfavorecendo o papel do Executivo na disputa.
“Por conta disso, medida provisória hoje não é a mesma coisa que era dez anos atrás, quando os governos se utilizavam desse mecanismo praticamente para governar à revelia do Congresso. Isso não existe mais porque o jogo mudou. A própria influência dos parlamentares no processo através do emendamento [das propostas] é um exemplo. Raramente uma MP sai do Congresso sem ser alterada. Então, este período agora desse conjunto grande de MPs que virão à discussão certamente vai ser um momento de desgaste pro governo”, afirma Rennó.
Para o professor, nessa toada, a consequência natural que se deve esperar adiante é a de alterações no conteúdo das medidas provisórias que estão na fila do Congresso. “O governo sabe que o Congresso vai mudar o conteúdo quando entender que precisa porque a MP não é mais um instrumento que simplesmente fortalece o Executivo. Hoje, com o poder cada dia mais enraizado e mais solidificado institucionalmente do Legislativo, a MP ganhou um outro sentido: ela serve para fazer a vontade dos dois Poderes simultaneamente com a urgência necessária. Do contrário, ela é rejeitada.”
Para Rennó, a disputa não deve se encerrar em breve e com a avaliação das MPs em si. “Certamente vai ser um momento de tensão, um momento em que o Legislativo vai impor sua força e a sua vontade ao Executivo porque essa é a nova tônica da relação entre esses dois Poderes no Brasil. Consequentemente, depois você pode esperar também uma discussão muito acalorada sobre vetos e ainda vetos derrubados. Então, é um processo que não vai se encerrar no momento da votação das MPs. É um jogo que vai ter várias arenas subsequentes e vários momentos subsequentes.”
Fonte: Brasil de Fato