Detentas perderam bebês após serem transferidas para unidade considerada precária e relataram uso de medicamento contraindicado para gestante e negligência médica; uma delas perdeu filho na privada da cela, em 2020
Carla*, de 30 anos, já tinha iniciado o pré-natal para a espera do filho que tanto desejava. Com um pouco mais de dois meses de gestação, ela acabou perdendo o bebê dias após ser transferida para o Complexo Médico Penal (CMP) de Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR), em novembro de 2021. Um ano antes, Lígia*, 25, também sofreu um aborto na privada da cela do complexo, sem nenhum acompanhamento de saúde, com mais de um mês de gravidez.
As violações a que elas foram submetidas fizeram com que o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) entrasse, nesta semana, com ações judiciais contra o Estado para pedir indenizações às mulheres pela “falta de estrutura, negligência e omissão ocorridas enquanto estavam privadas de liberdade”.
Carla tinha sido transferida da Delegacia de Campina Grande do Sul para o CMP, na mesma região, e já nos primeiros dias começou a apresentar corrimento vaginal e diarreia. Ao tentar pedir ajuda, uma enfermeira teria lhe dito que “não era nada” e mandou que ela voltasse para a cela. A mulher também não se alimentou porque chegou ao complexo após o horário da última refeição do dia e ficou numa cela escura e sem acesso a água.
Ainda passando mal, a equipe do CMP lhe deu um calmante contraindicado para mulheres grávidas, de acordo com Mariana Martins Nunes, que é coordenadora do Nudem. “Esse remédio é contraindicado na análise de bula, tudo vai passar pela perícia médica agora durante a instrução para que se possa fazer essa relação, mas o fato é que ela tinha feito um ultrassom fazia pouquíssimo tempo e estava tudo bem com o bebê. Logo depois que ela começa a relatar dores e toma esse remédio, desencadeiam ali os sangramentos. Ela acaba desmaiando na cela e é resgatada pelas presas que cuidam da faxina”, afirma.
Quando as detentas a levaram até a enfermaria, Carla sofreu mais violações, segundo a defensora pública. A enfermeira-chefe teria dito a ela “imagina ter um filho no sistema penitenciário”, “imagina grávida em um lugar desse”, “melhor coisa é um aborto” e a chamou de “pitizenta”, ou seja, de dramática. Depois dos exames que comprovaram o aborto, a mulher foi colocada de volta à cela sem saber se ainda estava grávida.
Ela ainda teria sofrido complicações posteriores por causa do aborto e uma prótese de mama se romper, ficar inflamada e sem poder sair para atendimento especializado. Atualmente, ela está em liberdade. Por isso, a Defensoria pediu, no caso dela, R$ 150 mil por danos morais. “Ela enfrentou diversas outras formas de violência ali dentro, além da violência obstétrica, e agora ela está já há algum tempo tentando engravidar novamente e não sabe se vai poder gestar em decorrência do abortamento e do tratamento que foi dado posteriormente”, explica Nunes.
Já Lígia estava na Cadeia Pública de Guarapuava, no interior do estado, com câncer de útero e gravidez de alto risco. Apesar de previsto em lei para gestantes e mães de crianças até 12 anos, os pedidos de prisão domiciliar foram negados porque ela seria transferida para o complexo, em junho de 2020. “Ela foi transferida de uma comarca [onde ela responde o processo] bem distante em razão de uma portaria que determina que as gestantes sejam encaminhadas para o CMP, então ela faz esse trajeto de cerca de 400 quilômetros, algemada, já com sangramento, numa situação de emergência obstétrica”, denuncia a defensora.
No local, a mulher disse que precisava tomar Ultragestan para não sofrer abortamento, mas não teve acesso ao medicamento nem acompanhamento médico necessário. “Quando chega uma gestante, é necessário que se veja qual foi o atendimento pré-natal anterior, que se requisite os prontuários para dar continuidade ao atendimento e nada disso foi feito. Até que essa mulher acaba sofrendo o abortamento ali na cela. Ela relata que o feto é expulso na privada, quando ela foi ao banheiro”, conta Nunes.
No caso dela, a Defensoria pediu R$ 80 mil de indenização. “É um tratamento que não é só negligente, mas violador no sentido de fazer pouco caso desse sofrimento”, destaca a coordenadora do Nudem.
Apesar de os pedidos de indenização serem individuais, o órgão também solicitou ao tribunal paranaense que o Estado fosse condenado a tomar “medidas de não repetição” de casos como o de Carla e Lígia. A Defensoria requereu:
- a criação de um protocolo de atendimento à saúde que garanta no mínimo as sete consultas de pré-natal; busca por informações da paciente junto à unidade de origem e à própria gestante sobre consultas realizadas antes da entrada no CMP;
- realização dos três exames de ultrassom (um por trimestre da gestação);
- acesso às medicações suplementos vitamínicos e nutrição adequados, conforme cada gestação;
- filtro e estratificação das privadas de liberdade grávidas por risco no momento de entrada no CMP, com indicação de intermediário ou alto;
- e contratação emergencial de profissionais da saúde para trabalhar no Complexo Médico Penal, com preferência para a especialidade de ginecologia e obstetrícia, e também para enfermaria obstétrica, já que há insuficiência de recursos humanos especializados para realizar o atendimento necessário às gestantes.
Os casos dessas mulheres só vieram à tona depois que a Defensoria fez inspeções no complexo médico naquela época. No relatório, que data de 9 de dezembro de 2021, o núcleo alertou que a ala de atendimento às mulheres, incluindo as gestantes, estava em condições precárias, desde a estrutura, com possibilidade de choque elétrico por conta de fios desencapados, mofo e umidade, ao atendimento por falta de profissionais de saúde.
Em 2022, o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) determinou a interdição ética parcial do CMP, ou seja, a proibição de exercício de profissionais, por conta da falta de condições mínimas de segurança para atendimento médico e de enfermagem, e da admissão de novos pacientes a partir de 4 de abril daquele ano. À Ponte, a assessoria do conselho disse que “o complexo continua interditado eticamente”.
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) também havia denunciado a situação degradante do estabelecimento.
Na época, por conta das inspeções, a Defensoria propôs ao governo estadual um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que é um instrumento para que o Estado repare violações coletivas e evite um processo judicial, o que não aconteceu até o momento. Em uma outra inspeção, feita em 2023, o órgão concluiu que o complexo “não possui condições estruturais nem recursos humanos suficientes para operar dentro da legalidade”.
Em janeiro deste ano, o Complexo Médico Penal voltou aos holofotes após um vídeo mostrar presos com deficiência amontoados em enfermaria insalubre, onde deveriam ter tratamento médico.
Para a defensora Mariana Nunes, a situação é “extremamente grave” e se classifica também como uma violência potencializada pela questão de gênero. “A gente pensar em uma mulher que está em trabalho de parto ouvir determinado tipo de coisa, sofrer alguns tipos de intervenções em seu corpo sem o cuidado, sem que haja explicações, pedido de consentimento… A gente vê tudo isso potencializado [no CMP]. Existem documentos internacionais que afirmam que realmente as mulheres privadas de liberdade são especialmente vulneráveis a sofrer a violência obstétrica e que cabe ao Estado reforçar as medidas de prevenção, mas o que a gente vê é que o Estado não só não previne que essa violência obstétrica ocorra como ele é o próprio violador”, critica.
O que diz a Polícia Penal
A Ponte procurou a assessoria da Polícia Penal paranaense, que é responsável pela administração do sistema penitenciário, incluindo o CMP, sobre os pedidos de indenização e as condições do complexo que foram denunciadas. A corporação enviou a seguinte resposta:
A Polícia Penal do Paraná lamenta a fala da enfermeira à época dos fatos, pois preza e trabalha incessantemente para melhores condições do cárcere. Destacamos que os fatos apresentados datam de 2020 e 2021, anteriores à reestruturação da Polícia Penal e do CMP, bem como do quadro funcional da unidade.
Esclarecemos que as gestantes do Complexo Médico Penal são alojadas em ala específica até o momento do parto, quando são encaminhadas ao Hospital Angelina Caron. Vale ressaltar que o CMP é unidade ambulatorial e em casos de atendimentos especializados, como gravidez de risco, a pessoa privada de liberdade é encaminhada ao atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde.
A PPPR informa ainda que foram iniciadas diligências administrativas para apurar os casos e que responderá as demandas judicialmente.
*Nomes são fictícios e foram trocados para preservar as mulheres.
Fonte: Ponte Jornalismo