O paciente veio ao retorno uma semana depois da primeira consulta. Chegou soltando fogo pelas ventas.
– Mas que fungação é essa, Seu Jorginho?
– Doutor, desculpe a falta de educação, mas aquele remédio que o senhor me deu não adiantou nada! Aliás, meu estômago está doendo mais do que quando vim aqui!
– E você fez a dieta e tomou o remédio certinho?
– Sim. Do jeito que o senhor receitou.
Matutei um pouco… Não melhorar, vá lá, mas piorar? Não fazia sentido.
– Qual o nome do remédio que eu dei?
– Aquele Gastrex, não é? – perguntou, remexendo a capanga à procura da droga.
Bem, como eu nunca prescrevi Gastrex pra ninguém, comecei a desconfiar o que se passava ali.
– Jorginho, você está com o medicamento aí?
– Olha ele aqui, doutor. – falou, triunfante, sacando a caixinha amarrotada e atirando- a sobre a mesa.
Ali, pude ler: Gastrex.
– Meu amigo, eu receitei pra você Estomax – disse quase protestando.
– E não é a mesma coisa?
– Não. São coisas bem diferentes…
– Mas o farmacêutico disse que era igual. Que fazia o mesmo efeito.
– Além de terem efeitos diferentes, provavelmente o Gastrex dê ao farmacêutico uma margem de lucro maior que a margem do remédio que eu lhe receitei. Por isso ele empurrou o Gastrex para você. Isso, na gíria, se chama empurroterapia! Por isso, ao invés de melhorar, você piorou!
– Cachorro… – sussurrou entre os dentes.
Esta conversa que tive com meu paciente, acontece todos os dias nos milhares de consultórios médicos espalhados por nosso Brasil. E o que é pior: expõe o profissional aos questionamentos nem sempre amigáveis de seus pacientes. Assim, perdem o médico e seu paciente e quem ganha é o fraudulento homem da farmácia.
Na rotina cotidiana das mais de 80 mil farmácias que existem em solo pátrio, entre prateleiras e balcões, desenrola-se um jogo sutil de interesses comerciais no qual a saúde muitas vezes se encontra em precário equilíbrio com a busca pelo lucro. O fenômeno da empurroterapia revela não apenas a complexa dinâmica do mercado farmacêutico, mas lança luz sobre questões éticas cruciais.
Em um mundo onde a saúde é a vez mais valorizada e seus custos frequentemente exorbitantes, as farmácias tornaram-se não apenas pontos de venda de medicamentos, mas também locais onde se busca aconselhamento e orientação sobre questões de saúde. Entretanto, essa busca pode ser frustrada por interesses comerciais que comprometem a integridade do atendimento ao cliente.
Veja só: em muitos casos, balconistas são incentivados financeiramente a promover determinados produtos, através de esquemas de comissão ou metas de vendas estabelecidas pela própria farmácia ou pela indústria farmacêutica. Essa pressa por vendas pode levar os balconistas a recomendar produtos mais lucrativos em detrimento da saúde do consumidor.
A empurroterapia não é apenas uma questão de ética ou de regulamentação legal pois levanta preocupações sérias sobre a segurança e a eficácia dos tratamentos médicos. Ao se substituir medicamentos prescritos por produtos semelhantes os consumidores estão expostos a riscos desnecessários, incluindo reações adversas, interações medicamentosas e falhas no tratamento.
Estes mesmos estabelecimentos enfrentam pressões significativas para maximizar seus lucros e manter sua competitividade em um mercado cada vez mais saturado. Nesse contexto, a venda de produtos com margens de lucro mais altas pode ser vista como uma estratégia legitima para garantir a sustentabilidade financeira do negócio. Todavia, nunca é demais se lembrar que a busca pelo lucro não deve ser realizada às custas da saúde e bem estar dos consumidores. As farmácias desempenham um papel crucial na promoção da saúde pública e devem agir com responsabilidade e integridade em todas as interações com seus clientes.
Para se combater eficazmente a empurroterapia e outras práticas antiéticas são necessárias medidas abrangentes que abordem tanto os incentivos econômicos quanto as lacunas regulatórias. Isso pode incluir a implementação de diretrizes mais rigorosas para a prática farmacêutica, a promoção de uma cultura de transparência e responsabilidade dentro das farmácias e a educação continuada dos balconistas sobre ética profissional e práticas recomendadas.
Os consumidores também podem desempenhar um papel crucial ao se educarem sobre seus direitos como pacientes, questionarem recomendações suspeitas e buscarem uma segunda opinião médica sempre que necessário. Ao fazerem escolhas informadas e assertivas os consumidores podem exercer pressão e fazerem que as farmácias priorizem a saúde e o bem-estar dos clientes e não somente seus lucros.
Em última análise, a empurroterapia representa um dilema moral que transcende as fronteiras da indústria farmacêutica. É um poderoso lembrete de que, em um mundo onde os interesses comerciais muitas vezes colidem com a ética e a integridade, é essencial permanecer vigilante e defender os valores fundamentais da saúde e do bem-estar humano.
Texto: Luiz Eduardo Cheida, gastroenterologista em Londrina