Trabalho doméstico lidera novas inclusões
Em abril último, o Ministério do Trabalho atualizou a listagem que concentra nomes de empresas e empregadores responsáveis por submeter funcionários a condições de trabalho análogas à escravização. Ao todo, foram inclusas 248 pessoas físicas e jurídicas.
Essa é a maior inclusão já realizada na história, segundo o órgão. O recorde já havia sido batido na última atualização, em outubro do ano passado, quando 204 empregadores foram adicionados à lista.
Auditores fiscais do trabalho realizam ações periódicas em que conferem as condições de trabalhadores em fazendas, obras e fábricas. Ao encontrarem irregularidades que afrontam a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – mas também outros acordos e convenções sobre o trabalho que o Brasil assinou – os fiscais autuam os empregadores e um processo trabalhista é instaurado.
Agora, a relação conta com 654 nomes. As atividades econômicas com o maior número de empregadores inclusos na lista foram:
- trabalho doméstico (43);
- cultivo de café (27);
- criação bovinos (22);
- produção de carvão (16);
- construção civil (12).
A lista existe desde 2004, porém foi suspensa entre 2014 e 2016, momento em que o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou a constitucionalidade do documento. O cadastro é atualizado a cada seis meses e os nomes dos empregadores só são agregados após a conclusão de investigação, considerando todos os recursos.
Em entrevista ao Portal Verdade, o advogado, professor, doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Luiz Augusto Silva Ventura do Nascimento, ressalta que a precarização da passagem do trabalho escravo para o livre no Brasil, tem entre seus reflexos a naturalização da exploração, negligenciando direitos dos trabalhadores, cada vez mais são submetidos a jornadas extenuantes e em situação de vulnerabilidade, visto o aumento de contratações terceirizadas e informais.
“Veja que o estado democrático de direito brasileiro mostra-se ineficaz para garantir os direitos fundamentais à população trabalhadora. Assim sendo, há um ambiente favorável para a exploração da mão de obra de grupos subalternos. Pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica são arregimentadas e, muitas vezes, coagidas a trabalharem de modo semelhante à escravidão, em condições degradantes e exploradoras, frequentemente, sem remuneração e sem a possibilidade de deixar o posto de trabalho”, observa.
Para o pesquisador, portanto, a condição do trabalho análogo à escravidão é um fenômeno social que sempre esteve presente na sociedade brasileira. Ele destaca que, a partir da década de 1970, entidades como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) passaram a denunciar a violência, inclusive, em âmbito internacional, o que forçou o estado brasileiro a tomar medidas de fiscalização e combate, a exemplo do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho em 1995. O órgão tornou-se o principal agente responsável pelo registro dos casos descobertos a partir das denúncias no país.
“Entretanto, para serem bem-sucedidas as operações e terem mais casos descobertos, são necessários investimentos por parte do estado nacional. Os auditores e fiscais do Ministério do Trabalho precisam de recursos humanos (constância de concursos públicos para suprir aposentadorias) e materiais para realizarem as operações (condições materiais: carros, gasolina, trabalho realizado em força tarefa com suporte da Polícia Federal e, em alguns casos, da Polícia Rodoviária Federal”, observa Nascimento.
Trabalho escravizado nos centros urbanos desperta menor comoção
O docente ressalta que a escravização contemporânea é um processo muito complexo e multifacetado. Alguns setores têm apresentado maior número de casos nos últimos anos, são eles: agricultura, pecuária, indústria têxtil e do vestuário, mineração, carvoaria, construção civil e serviços domésticos. Ainda, segundo Nascimento, o trabalho escravo contemporâneo pode ocorrer em centros urbanos e zonas rurais.
Mas, ele aponta que quando acontece nas cidades, tende a gerar menor comoção, pois no imaginário social, estes espaços estão mais relacionados ao desenvolvimento econômico, progresso e, assim, estariam distantes desta forma de opressão. Mas a realidade mostra que este entendimento não se sustenta no cotidiano.
“O desconhecimento e a desinformação fazem com que os escravizados urbanos não sejam vistos como trabalhadores em condição análoga à de escravidão, quando são. Acho importante dizer que, além da condição degradante e jornada exaustiva, há direitos trabalhistas violados como o não recebimento das horas extras e do vale transporte, a não fruição do descanso legal e o desconto do valor do exame admissional”, pontua.
Racismo e xenofobia
Ainda, de acordo com Nascimento, embora a população negra devido às condições de vulnerabilidade econômica seja mais afetada pela violência, a submissão ao trabalho análogo à escravidão não ocorre exclusivamente contra este segmento da sociedade.
“A OIT [Organização Internacional do Trabalho] publicou um estudo em 2011, com dados coletados, entre outubro de 2006 e julho de 2007, mostrando que 81% dos trabalhadores submetidos ao trabalho análogo ao de escravo eram não-brancos: 18,2% dos quais autodenominavam-se pretos, 62% pardos e 0,8 indígena. A porcentagem de pretos (18,2%) foi 2,5 vezes superior à da dimensão presente na população brasileira (6,9%), algo próximo ao índice do estado da Bahia onde a parcela de pretos é a maior do país (15,7%)”, explica.
Contudo, para o professor, no Brasil, o trabalho escravo contemporâneo está, primeiramente, associado ao desenvolvimento do sistema capitalista, a forma de acumulação do capital assentada na exploração irrestrita da força de trabalho para obtenção do lucro.
“Mas isso não significa dizer que o racismo e a xenofobia não influenciam, porque já foi comprovado cientificamente que o racismo é estrutural, ou seja, está incorporado, é frequentemente naturalizado, em diversas práticas sociais, entre elas a escravidão contemporânea: exploração de trabalhadores e trabalhadoras regularmente concebidos como “inferiores” ou “diferentes”. Logo, são discriminados, sofrem abusos físicos e psicológicos devido à cor da pele e origem (xenofobia)”, adverte.
Nascimento reforça que o aliciamento da mão de obra em regiões distantes é frequentemente empregado para deixar a vítima ainda mais vulnerável a partir do distanciamento da família e amigos. “Em localidades distantes, populações em condição de miséria e extrema pobreza podem ser agredidas, violentadas e hostilizadas, tem-se indivíduos de determinadas regiões sofrendo discriminação em razão de sua cultura ou origem geográfica”, assinala.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.