Em diferentes províncias, em todo o país, aconteceram marchas pelo descongelamento da verba destinada às universidades públicas
“Apesar das limitações, sempre tivemos, mais ou menos, o edifício em boas condições, os banheiros limpos, todos os produtos de limpeza, e, neste momento, não tem galão de água para professores e alunos, não tem papel higiênico nos banheiros”. Parada em frente a bandeira de um grêmio de professores e pesquisadores universitários, Beatriz Introcaso, 55, professora de matemática na Faculdade de Engenharia da Universidade Nacional de Rosário, 30 anos de militância e docência, viajou quatro horas de ônibus para chegar a Buenos Aires, mais precisamente, à Praça do Congresso, que serviu de ponto de encontro para a manifestação multitudinária contra o plano de ajuste do governo de Javier Milei.
Estima-se que a marcha deste 23 de abril levou cerca de 800 mil pessoas às ruas, em Buenos Aires. Talvez, tenha sido o mais significativo e importante protesto, desde a assunção do presidente. As universidades públicas têm previsto receber, este ano, uma verba equivalente à de 2022, sendo que a inflação interanual de março registrou 287,9 %. A Universidade de Buenos Aires (UBA), com mais de 330 mil estudantes, declarou emergência orçamentária, com recursos suficientes para funcionar até maio.
Sob o lema, “Em defesa da educação pública”, ontem, por volta das 15h30, estudantes, professores e sociedade civil autoconvocada, pessoas de todas as idades, idosos com bengala e famílias com crianças, ocupavam os arredores do Congresso. A multidão marchou em sentido à Praça de Maio, onde, por volta das 18h horas, foi lido um documento assinado por diretores de todas as universidades do país. “Convocamos os cidadãos a apoiarem as universidades públicas. Elas são um dos motores da democracia, da produção e dos laços sociais”, leu a presidente da Federação Universitária Argentina (FUA), entidade fundada há 106 anos, que organizou e convocou a marcha desta terça-feira, 23, quando também se comemora o Dia Internacional do Livro. As principais centrais sindicais do país também aderiram à marcha.
Mais uma vez, via-se na organização da marcha a tradição e costume às mobilizações de rua, na Argentina. Antes de dar início à marcha, durante a concentração, os sindicatos se posicionaram à direita da Praça do Congresso, enquanto os movimentos estudantis e universitários, como também os grêmios de trabalhadores não-docentes das universidades, ocuparam o lado esquerdo da praça. A marcha aconteceu também nas cidades de Rosário, Córdoba e La Plata, nas províncias do Sul do país, como Tierra del Fuego e Santa Cruz, entre outras.
O estudante da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), Agustín Sesto, 26, militante da agrupação estudantil Franja Mojada, disse que pretende retribuir com o título universitário os esforços que seus pais, que moram General La Madrid, interior da província de Buenos Aires, têm feito para manter seus estudos em La Plata. “As contas de luz e gás aumentaram muito e entendo que minha família tem feito um sacrifício enorme para que possa me formar. Mas a situação da universidade é muito crítica”. Cursando o último ano da carreira, Sesto têm receio de não conseguir se formar.
As Mães da Praça de Maio também estiveram presentes no palco montado na Praça de Maio. “Podemos ter perdido a eleição, mas não fomos derrotados”, disse Taty Almeida, que teve o filho Alejandro Almeida desaparecido em 17 de junho de 1975, pela Triple A – Aliança Anticomunista Argentina. O governo Milei também se caracteriza pelo discurso anti-direitos humanos e de negação do terrorismo de Estado perpetrado pela última ditadura cívico-militar (1976-1983). A vice-presidente Victoria Villarruel tem familiares que foram agentes da repressão.
Também a estudante Pilar Barbás, 29, secretária da Federação Universitária Argentina e militante do partido “Esquerda Socialista”, falou sobre o receio de não conseguir continuar os estudos, mas disse confiar na tradição de luta dos professores e estudantes. “A gente planeja o curso, se inscreve nas matérias, começa a estudar para as provas, mas não sabemos se vamos poder cursar no segundo semestre, e se nossos sonhos serão destruídos. Temos que confiar que o movimento estudantil e de professores na Argentina tem muita tradição”. Algumas faculdades chegaram a declarar que poderiam fechar, nos próximos meses, caso o governo não reconsidere o aumento das verbas destinadas às universidades públicas.
“Durante o governo Macri havia diálogo. Hoje, não há diálogo”. José Ojeda, 46, trabalha há 22 anos na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM), na área de Manutenção Geral. Todos os entrevistados pelo Jornal GGN afirmaram que a atual situação vivida pelas universidades públicas é muito mais drástica, se comparado com o ajuste do governo do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), fundador do principal partido de direita da Argentina, Proposta Republicana (PRO).
Ojeda comentou como funciona a divisão dos gastos na universidade, para explicar a insuficiência orçamentária, parte do plano de ajuste do governo. “Para que tenham uma ideia de como vem a situação, 80% do orçamento total corresponde a salários de docentes e não-docentes, e 20% é destinado à luz, insumo de laboratório, e nos estão dando 70% destes 20%. Por isso, estamos buscando formas de economizar, na luz, diminuição da segurança, nos produtos de limpeza”.
Muitas faculdades têm realizado atividades de protesto, nas últimas semanas, como aulas abertas ao público, com as cadeiras na porta das universidades. Na chamada “Cidade Universitária”, que reúne as faculdades de Arquitetura, os institutos de Astronomia e Física, e Geologia, também na capital, os alunos entraram em estado de vigília. O mesmo aconteceu na Universidade de Quilmes (UNQ), com adesão também de várias outras faculdades da UBA.
Há uma semana, a Faculdade de Medicina da UBA, que tem 17 andares, ficou às escuras e os alunos tiveram que descer as escadas utilizando a luz do celular. Essa é uma das chamadas “medidas de austeridade” que a faculdade se viu forçada a tomar, frente à falta de recursos. Os elevadores, por exemplo, apenas podem ser usados por pessoas com “mobilidade reduzida ou em caso de assistência ou emergência”, dispunha o comunicado que circulou nas dependências da faculdade.
Foi notícia, nos últimos anos, a quantidade de brasileiros que têm vindo à Argentina para estudar, especificamente, a carreira de Medicina. O mesmo acontece também com estudantes chilenos, mas, no caso, as universidades públicas do país não são gratuitas, assim, muitos chilenos escolhem a Argentina para realizar o sonho da carreira universitária.
A Argentina é referência em educação pública gratuita e de qualidade na região, como disse a professora da Universidade Nacional de Rosario, Beatriz Introcaso, ao comentar a importância da marcha deste #23A. “A universidade pública é algo que nos caracteriza em toda a América Latina”. E como enfatizou a estudante Pilar Barbás, “a universidade é transversal a todo o povo argentino, e, nesse sentido, acho que a luta é muito importante”. A marcha deste 23 de abril demonstrou que a universidade pública é um patrimônio que a sociedade argentina fará o possível para preservar.
Fonte: GGN