Gratificações não são especificadas no Portal da Transparência e são alvo de questionamento jurídico
A Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) chega a quintuplicar os salários de ocupantes de cargos comissionados, preenchidos por indicação e sem concurso público. O Plural teve acesso a planilhas de pagamento da Assembleia paranaense, referentes aos meses de maio e setembro de 2023, e cruzou os números com os dados do Portal da Transparência do Legislativo. Com a incorporação de gratificações, nesses dois meses os cerca de 1,9 mil comissionados da Assembleia receberam, em média, R$ 7 mil acima do salário base definido para cada cargo. Em alguns casos, a gratificação chegou a R$ 22 mil.
O Portal da Transparência não especifica a natureza das gratificações e trata o valor total apenas como “Cargo em Comissão”. O motivo pode ser o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) contrário ao pagamento de gratificações que possam ser incorporadas aos salários dos funcionários sem concurso público – algo que mesmo assim se repete continuamente, como mostram os dados do Portal da Assembleia Legislativa. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o Ministério Público do Paraná (MP-PR) já fizeram recomendações a respeito desse tipo de pagamento.
O que possibilita a incorporação das gratificações é a lei estadual 16.390, de 2010, que já foi alvo de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) no STF. O Capítulo 3 determina que a Comissão Executiva da Alep (formada pelo presidente, pelo primeiro e pelo segundo secretários) pode conceder dois tipos de verbas extras para comissionados: a gratificação de apoio administrativo e a verba de representação. Os dados do Portal da Transparência mostram que algum tipo de gratificação é paga, mas ela não é especificada. A especificação acontece apenas no contracheque que o próprio servidor recebe.
Salário maior
Para dar um exemplo do que acontece. Em maio de 2023, o vencimento bruto de um comissionado lotado na Diretoria Administrativa da Assembleia foi de R$ 29,3 mil – o funcionário é ocupante de um cargo com a terminologia G1, cujo salário é de R$ 6.324,35, segundo o site oficial da Assembleia. O Portal da Transparência da Assembleia classifica a soma do salário base com a gratificação como “Cargo em Comissão”, sem citar o benefício incorporado. O salário foi de R$ 23 mil depois de aplicados os descontos, um crescimento de 263% em relação ao definido para o cargo G1.
Um caso semelhante foi verificado na Diretoria de Pessoal da Assembleia: um comissionado com cargo G1 recebeu R$ 22,8 mil em maio de 2023. O salário bruto foi de R$ 29,3 mil, classificado no Portal de Transparência como “vencimento comissionado com base na lei 16.390 e alterações posteriores”.
Ocupantes de cargos com salários menores também recebem gratificações. Lotada com um cargo G4 e um salário base de R$ 3.952,70, uma funcionária teve um salário bruto de R$ 20,1 mil em maio de 2023 – R$ 18,9 mil a título de “Cargo em Comissão” (o salário base somado às gratificações não especificadas) mais os benefícios (auxílio-alimentação ou auxílio-creche), no valor aproximado de R$ 1,1 mil. O salário líquido ficou em R$ 18 mil naquele mês, um acréscimo de 355% em relação ao salário base. Diferentemente das demais gratificações, o auxílio-alimentação e o auxílio-creche são especificados.
Cinco vezes mais
O cargo comissionado com o menor vencimento no Legislativo é o G7, com salário base de R$ 948,61. Geralmente o G7 é usado para contratar funcionários para os gabinetes dos deputados, mas dificilmente o vencimento fica no valor do salário original. Em maio do ano passado, um comissionado lotado em um gabinete teve um salário bruto de R$ 5,9 mil; com descontos, o valor caiu para R$ 5,1 mil – mais de cinco vezes o salário base, um crescimento de 437%. Já uma funcionária com cargo G5 que atua em uma das Comissões permanentes do Legislativo, recebeu bruto R$ 14,8 mil em maio de 2023, cinco vezes mais o salário base de R$ 2.845,95 definido para o cargo.
Critérios
Segundo a Diretoria de Comunicação da Assembleia Legislativa do Paraná, os critérios para a incorporação dos valores aos vencimentos foram definidos em 2010 e os atos da Comissão Executiva são publicados no Diário Oficial da Assembleia. “Os atos normativos que impliquem na realização de despesas públicas, inclusive das obrigatórias de caráter continuado, de que são exemplo as de pessoal, são devidamente publicados no Diário Oficial da Assembleia Legislativa. Os critérios para atribuição das gratificações previstas em lei aos servidores foram estabelecidos nos Atos da Comissão Executiva n.º 767/10, 768/10 e 769/10, regularmente publicados na edição n.º 42 do Diário Oficial da Assembleia, de 3 de maio de 2010”, diz a nota enviada pela Alep.
A respeito da ausência da especificação da gratificação no Portal da Transparência, a Diretoria de Comunicação informou que a divulgação segue o que está definido na legislação. “Sobre a disposição dos elementos que compõem a remuneração dos agentes públicos, a padronização visual adotada pelo sítio oficial está em linha com as prescrições da Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação) e da Lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados)”, diz a nota enviada pela Assembleia.
A reportagem entrou em contato na semana passada com as assessorias dos três deputados que integram a Comissão Executiva da Casa, Ademar Traiano (PSD), Alexandre Curi (PSD) e Maria Victoria (PP), respectivamente o presidente, o primeiro secretário e a segunda secretária da Assembleia, mas eles não se manifestaram sobre o assunto.
Limbo jurídico
Os pagamentos não são ilegais, mas ficam em uma espécie de “limbo jurídico”. A lei 16.390, que possibilita os acréscimos, foi alvo de uma ADI movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O STF, no entanto, declarou a inconstitucionalidade apenas do artigo 27 da lei, que tratava da criação de cargos. O ministro Gilmar Mendes, relator da ADI em 2012, afirmou desconhecer o conteúdo dos artigos que permitem o pagamento das gratificações, pois eles não foram alvo da ação.
O entendimento do STF é que os comissionados não podem receber verbas indenizatórias como se fossem remuneratórias, ou seja, que esses valores não podem ser incorporados aos salários dos funcionários. O pagamento das gratificações, no entanto, é comum e se repete todos os meses na Assembleia.
“O STF pode decidir em controle concentrado, que são as ADIs, e desde 2004 existe a questão do efeito vinculante, ou seja, determinadas decisões do Supremo têm efeitos em toda a administração pública”, explica o advogado Clóvis Alberto Bertolini, mestre e doutorando em Direito. “Teve um caso recente do estado de Goiás. Quando há o reconhecimento da repercussão geral, as decisões são de observação obrigatória por todas as esferas de poder”.
Com base no entendimento do STF, o TCE-PR declarou que o pagamento de gratificações dessa natureza a comissionados é ilegal. Em Acórdão de 2018, o Pleno do Tribunal declarou que “não é possível a acumulação da remuneração de cargo em comissão com gratificação por função de confiança ou com outras instituídas em razão de condições excepcionais de serviço”.
Em outro Acórdão, de 2019, o TCE afirmou que a Alep “não atendeu às reiteradas recomendações deste Tribunal de Contas (…), em que foi apontada a necessidade de equacionar a desproporcionalidade existente entre os servidores ocupantes de cargos em comissão e efetivos (…)”. Em um terceiro Acórdão, de 2020, o Tribunal declarou que é vedada “a acumulação de cargos em comissão e funções comissionadas e o estabelecimento de gratificação por tempo integral e dedicação exclusiva a ocupante de cargo em comissão”.
Nova lei
Nos dias 20 e 21 de maio deste ano, a Alep aprovou uma nova lei para reorganizar o quadro de funcionários comissionados. No artigo 20, a lei diz que poderão integrar a composição dos vencimentos parcelas remuneratórias e indenizatórias o auxílio-alimentação, o auxílio-creche, o auxílio-saúde, diárias, verba de representação, gratificação de apoio administrativo, adicional de férias e 13º salário.
No Anexo 3, o projeto estabelece que a verba de representação poderá ser de até 100% sobre o vencimento e que a gratificação de apoio administrativo poderá ser de até 150%. Se as duas forem aplicadas, o crescimento será 250%: um comissionado com salário de R$ 1.000 poderá receber R$ 3.500, mais que o triplo do salário base.
Um dos problemas do projeto, avalia o advogado Clóvis Alberto Bertolini, é que ele abre a possibilidade para a verba de representação e a gratificação de apoio administrativo serem tratadas como verbas remuneratórias, e não indenizatórias.
“Existem algumas previsões que abrem a possibilidade de pagamento de algumas verbas que não seriam compatíveis com o regime do comissionado”, afirma Bertolini. “Um exemplo é a verba de representação. Segundo entendimento do STF, ela não pode ter uma natureza remuneratória. Se for pago um valor fechado por mês, essa verba de natureza indenizatória acaba se transformando em verba de natureza remuneratória. O projeto não traz especificações sobre o funcionamento dessa regra e abre essa possibilidade”. Segundo o projeto, a concessão do benefício ficará a cargo da Comissão Executiva da Alep.
Outro problema apontado por Bertolini é em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, caso haja aumento de despesas. “O ponto que eu acho mais sensível é em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pois não pode haver aumento de despesa sem a contraprestação de onde vai vir essa receita. Há um parecer dizendo que não haverá aumento de despesas, mas, se a Comissão regulamentar, poderá haver aumento”.
A Diretoria de Comunicação da Alep informou que não foi comunicada a respeito dos posicionamentos do Supremo, do TCE e do MP-PR. “Quanto ao posicionamento de órgãos jurisdicionais e de controle, afirma-se que a Assembleia Legislativa não recebeu qualquer expediente do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal de Contas do Estado ou do Ministério Público sobre uma suposta irregularidade formal ou material das normas que disciplinam a estrutura remuneratória de seus quadros de pessoal”, diz a nota enviada pela Assembleia.
Fonte: Jornal Plural