Com sua personalidade enigmática e uma linguagem poética e inovadora, Clarice Lispector (1920-1977) é, merecidamente, cultuada em todo o mundo como um dos maiores nomes da nossa literatura. Inspirado por suas obras, o Caminhão de Histórias, um caminhão-baú de 15 metros, adaptado para receber mostras culturais interativas, apresenta a exposição “A Casa que anda. Que mistérios tem Clarice baseada nos livros ‘A vida íntima de Laura, ‘O mistério do coelho pensante e ‘A mulher que matou os peixes. O projeto fica no Parque Municipal Arthur Thomas, entre os dias 20 e 23 de agosto (de terça a sexta-feira), com entrada gratuita, e visa a atender ao público circulante, bem como um amplo programa para escolas públicas e privadas do Estado, visando incentivar a formação de novos leitores.
Com curadoria de Eucanaã Ferraz, poeta, consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) e professor de literatura brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ, e com direção artística e cenografia de Daniela Thomas, cineasta, diretora teatral, dramaturga e cenógrafa, e intervenções artísticas dos artistas plásticos Maria Klabin, Marcela Cantuária, Raul Mourão e Mariana Valente, “A Casa que anda apresentará atividades e reflexões sobre o universo infantojuvenil da criação de Clarice de Lispector a partir de histórias que dialogam com seus jovens leitores, despertando curiosidades sobre sentimentos e emoções, que evocam inúmeras reflexões.
Um projeto de educação gratuito, inclusivo e democrático, “A Casa que anda sucede o exitoso projeto Busão das Artes, que trouxe “O Mundo Invisível, concebido no pós-pandemia, e que abordava de forma lúdica o mundo dos fungos, vírus e bactérias, e é uma realização de Renata Lima, que dirige a Das Lima Produções, e da dupla Lilian Pieroni e Luciana Levacov, da Carioca DNA. “Um caminhão-baú transformado em espaço expositivo, que percorre praças e parques do Brasil, ‘O Busão das Artes nasceu da nossa vontade de educar, humanizar e sensibilizar o público em relação a temas importantes, sempre permeando questões ambientais. Esse projeto acontece em praças e outros espaços públicos, gratuitamente, e está aberto a todos, afirma Luciana Levacov, sócia da Carioca DNA.
Segundo Eucanaã Ferraz, “a obra de Clarice Lispector tem um raro poder de atração, não importando a idade e outros traços particulares de quem a lê. Sua palavra é, nesse sentido, universal. Não há dúvida de que associar a escrita com a materialidade das artes visuais e as experiências propriamente lúdicas será impactante para todos que passarem pela ‘Casa que anda. Também é importante observar que a maior parte das narrativas de Clarice se passa nos ambientes domésticos e, desse modo, criar um ambiente de experiências sensoriais e estéticas numa ‘casa trará para mais perto do público o mundo mágico e atraente da autora, ressalta o curador.
O encantamento começa com o próprio baú do caminhão, totalmente adesivado com primorosas ilustrações de autoria de Mariana Valente, neta de Clarice, que abordam vários aspectos de sua vida, com imagens de cidades e países que visitou ou onde viveu, como Recife, Rio de Janeiro, Pisa, Genebra, e Washington, intercaladas com imagens da escritora cercada de crianças, jardins e animais.
Instalações artísticas e interativas apresentam dois ambientes da casa: interno e externo. Quem guia o visitante por esse universo é a “própria Clarice, com mediadoras caracterizadas que incorporam a personagem, dando a ideia de que a autora os recebe em sua própria casa.
Daniela Thomas, que recriou o espaço interno da casa de Clarice a partir de fotos da residência da autora, reflete sobre como conduziu essa experiência: “Clarice tem a capacidade de revelar a profundidade da experiência humana nas situações mais banais e corriqueiras da vida. Com isso, nos desperta da alienação diária e somos tomados de uma hipersensibilidade para a nossa própria vida. Nosso objetivo é que os visitantes possam ter a experiência de olhar as mesmas coisas que sempre olham, só que agora com a sensibilidade renovada, surpreendendo-se com o que a literatura pode oferecer para a ampliar nossas perspectivas e nossa própria vida”.
Além da reprodução do ambiente onde viveu a escritora, que abriga inclusive sua mesa de trabalho, onde repousam manuscritos e uma máquina de escrever com um texto em andamento, o espaço inclui referências e curiosidades dos três livros abordados na exposição, como um aquário vazio – já que os peixes morreram por falta de alimento, quadros da galinha Laura, do Coelho e do peixe, além de vídeo gravado com câmera em primeira pessoa na visão dos animais – assim como fazia a escritora, que criava as histórias a partir da perspectiva dos bichos.
“Busquei replicar a experiência da leitura dessas obras recriando seu apartamento e povoando-o com suas reflexões escritas, cuidadosamente selecionadas por Eucanaã. Clarice, sentadinha em seu sofá com a máquina de escrever apoiada nos joelhos, digitava seus textos extraordinários, enquanto seu olhar não via mais do que as mesmas mobílias e animaizinhos que a cercavam, dia após dia. Uma imaginação fulgurante! Já do lado de fora, o quintal da casa foi reinterpretado por artistas contemporâneos. Também foi criado um filme, que me surgiu com furor quando li os livros pela primeira vez. Pensei: precisamos ver o mundo dos bichos como Clarice apontou, do ponto de vista deles, ressalta Daniela.
Do lado externo, as três histórias se unem com diversas atividades de referência aos animais retratados, como o cercado do coelho que dá algumas pistas para que as pessoas tentem descobrir como sua fuga ocorreu. A Casa do Coelho, projeto do artista Raul Mourão, é representada por uma pequena casa de aço criada para retratar o misterioso desaparecimento do coelho da ficção de Clarice. Segundo o artista, “uma gaiola/escultura sobre confinamento e fuga, confeccionada com o mesmo material das grades de segurança que nos acompanham nas grandes cidades brasileiras.
Um lindo tapete, desenhado pela artista plástica Maria Klabin, transmite a sensação do piso de um quintal, com caracóis, tatus-bola, folhas, restos de comida, que podem ser explorados com o auxílio de lupas de aumento. “Esses três livros fazem parte das minhas melhores lembranças com meus filhos crianças, conta Maria. “Líamos os três em série. É nítida a memória do momento em que eu abria a capa de ‘A mulher que matou os peixes. A capa era dura, como um pequeno portão. E éramos conduzidos dos risos, gargalhadas à confusão, tristeza, ternura, apreensão, e algumas emoções cuja existência só descobrimos pelos livros da Clarice. É um privilégio visitar esse quintal pelo qual já devo ter passado muitas vezes, dessa vez, olhando para o chão que deu origem a tantos voos, completa a artista, sobre a experiência de criar o piso.
Ainda no quintal, o ovo da Galinha Laura, criado por Marcela Cantuária, leva os visitantes a uma reflexão sobre o mistério da vida e a promessa de futuro, “simbolizando de maneira lúdica a gestação e as inúmeras possibilidades que a existência nos traz”, explica Marcela. “Me senti honrada com o convite para participar da exposição, pois admiro imensamente o legado de Clarice. Uma mostra de arte circulante e interativa, como é o caso do Caminhão de Histórias, reforça o compromisso da arte com o coletivo, além de ser um movimento interessante e inovador”, completa a artista.
A experiência traz práticas educativas que remetem ao ofício da escritora, como o espaço de leitura, atividades com máquinas de escrever, oficinas criativas inspiradas nos enigmas das histórias, produção e envio de cartão postal entre outras dinâmicas a serem conduzidas por educadores formados pela equipe da Percebe consultoria especializada em educativos de museus e exposições. Os estudantes que visitarem a exposição receberão um caderno de atividades para continuarem a experiência na escola, orientados por seus professores, ou mesmo em casa com seus familiares.
Contando de forma lúdica e participativa a história e obras de Lispector para as crianças, a exposição busca democratizar o acesso à arte e à literatura em diversas localidades do País. Em 2024, “A Casa que anda passará por São Paulo (Parque Horto Florestal e Parque Linera Bruno Covas), Paraná (Londrina e Curitiba), Santa Catarina (Joinville), Goiás (Goiânia), Maranhão (Imperatriz), Bahia (Salvador), Minas Gerais (Belo Horizonte) e Rio de Janeiro (Rio de Janeiro e Niterói). A expectativa é que mais de 60 mil pessoas passem pelo Caminhão de Histórias nessa temporada.
Livros infantojuvenis
Eucanaã Ferraz nos oferece um panorama sobre os livros de Clarice Lispector para a infância: “os livros de Clarice Lispector para a infância como suas obras para o público adulto são inquietantes. Se a linguagem é acessível e próxima do universo infantil, lá estão as perplexidades, as dúvidas, as perguntas, os mistérios da vida e da morte. Os textos conversam com o leitor e, assim, criam uma intimidade que desarma seu olhar e lhe possibilita viver experiências nas quais a natureza e os animais são parte fundamental. Não são, de modo algum, textos que buscam educar pelo viés da obviedade ou da complacência, como se o leitor-criança fosse imaturo ou intelectual e existencialmente despreparado. Pelo contrário, no convívio do humano com a natureza há traumas, choques, incompreensões, tristezas, mas também amor, humor, alegrias, enfim, múltiplos afetos. O resultado é o exercício estético e vital que se exige de toda e qualquer literatura. E, isso, claro, faz com que esses textos sejam atraentes também para público adulto.
A exposição é inspirada em três livros infanto-juvenis de Clarice:
‘A vida íntima de Laura : conta a história de Laura, a galinha que mais bota ovos em todo o galinheiro. Compondo uma personalidade cheia de nuances para sua personagem, Clarice diverte os pequenos sem subestimar sua inteligência.
‘O mistério do coelho pensante: o sumiço de um simples coelhinho branco quem diria! inspira uma das mais instigantes histórias infantojuvenis de Clarice Lispector. Nesse livro a escritora discorre sobre profundas questões existenciais, na dose certa para a apreciação dos pequenos leitores. Qual a diferença entre “natureza humana” e “natureza de coelho”? Como a gente sai do terreno da necessidade para o da vontade e da criatividade? É possível um pensamento que seja também um sentimento e uma sensação?
A mulher que matou os peixes : aqui a sintonia com os leitores é obtida a partir do endereçamento direto, e o texto anuncia-se como uma confissão da narradora (“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu ) e um pedido de perdão à humanidade. Suspenses são encontrados a partir de pequenas tramas, em que perdão e culpa se sucedem.
A união das obras busca explorar temas como mistério – o sumiço do coelho, culpa – matou o peixe, autoestima – galinha Laura que se acha feia, o mistério da vida – o ovo – e da morte – o peixe.
Por onde o Busão das Artes já passou?
O Busão das Artes, que volta agora como Caminhão das Histórias, “saiu da garagem pela primeira vez em 2021. A ideia era criar um projeto itinerante de ciências e meio ambiente, que mostrasse como o mundo microscópico pode ser entendido e vivenciado por meio da arte contemporânea, ampliando a compreensão do público sobre o universo, o corpo humano, as bactérias (tanto as benéficas quanto as perigosas) e a relação dos indivíduos com o meio ambiente.
A primeira mostra contou com a curadoria de Marcello Dantas, em parceria com o físico Luiz Alberto Rezende de Oliveira, um dos idealizadores e ex-curador do Museu do Amanhã. A iniciativa apresentava duas vertentes: uma ambiental, que tratava das bactérias e seu papel no ecossistema, e outra científica, abordando temas relacionados ao organismo humano. Tudo isso com instalações artísticas e interatividade, mostrando como as manifestações da vida biológica se relacionam com tudo que há no planeta.
Com obras dos artistas Jaider Esbell, Piero Manzoni, Ricardo Carvão, Ricardo Siri, Suzana Queiroga, Vik Muniz, Vivian Caccuri e Walmor Corrêa, o projeto passou por quatro Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo) e recebeu a visita de mais de 112,2 mil pessoas.
Com apoio do Ministério da Cultura por meio da Lei Rouanet, o projeto tem parceria do Instituto CCR, da Sotreq CAT, do BTG Pactual e da Artplan.
Fonte: TEM LONDRINA