De acordo com associações, não há nenhuma perspectiva para criação de escolas militares desde a educação infantil no país. Medida é apontada como polêmica e excludente
O plano de governo (disponível aqui) do candidato à Prefeitura de Londrina, Tiago Amaral (PSD), propõe a criação de escolas municipais militares. “Tendo o Colégio da Polícia Militar como referência, vamos criar escolas municipais militares, para que nossas crianças estudem desde cedo num ambiente de disciplina e respeito aos professores e aos pais”, diz o documento.
Em entrevista à RPC, na última terça-feira (15), o concorrente afirmou que se eleito, 20% das escolas municipais seguirão o modelo militar.
A rede municipal de Londrina conta com aproximadamente 47 mil alunos, atendidos por 61 centros de educação infantil parceiros, 33 centros municipais de educação infantil e 88 escolas municipais. A fim de verificar os principais impactos da mudança, o Portal Verdade, conversou com representantes da APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Paraná) e CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação).
Vanda Santana, professora e secretaria educacional da APP-Sindicato, classifica a medida como uma “tragédia”para a formação inicial das crianças. Ela destaca que nesta fase de escolarização, que compreende a educação infantil e o ensino fundamental I – até o 5º ano, o estímulo à imaginação e respeito as diversidades têm que ser incentivados.
“Essa proposta de converter 20% da rede municipal em escolas municipais militares, em nossa avaliação, é uma tragédia para a formação das crianças, dos adolescentes, da sociedade, principalmente, porque a rede municipal é responsável pela formação inicial das nossas crianças. Então, transformar escolas em escolas municipais militares significa impor para essas crianças uma padronização pedagógica, de um modelo de formação que não respeita de forma alguma a diversidade e não desenvolve a criatividade”, diz.
“É fundamental que a educação infantil e que as séries iniciais do ensino fundamental, sejam um momento em que os profissionais da educação, os professores e as professoras, possam trabalhar com as formas mais variadas de metodologias de ensino. Também que possam apresentar para estes estudantes, que estão em processo de formação, a totalidade da vida, da sociedade, das formas de organização, o respeito a todas as manifestações culturais, manifestações artísticas, bem como as culturas diversas que nós temos na sociedade. Então, é muito grave impor esse modelo baseado na hierarquia militar”, ela complementa.
Quando são convertidas ao modelo cívico-militar, as escolas devem seguir um conjunto de normas, que inclui instruções sobre fardamento, também corte de cabelo, entre outras regras para o comportamento.
Para meninas é recomendado, por exemplo, uso de pouca maquiagem. Não é permitido cabelos raspados, com pinturas ou cortes como o de tipo moicano ou desenhos nas sobrancelhas. Também não é permitido o uso de brincos ou piercing. Há revistas mensais dos cortes de cabelo dos estudantes.
“Nós temos vários exemplos de extrema violência nesses modelos de escola, violências físicas, violências morais, quando se estabelece que um determinado comportamento é o comportamento aceitável, um estilo de cabelo, de roupa, de postura, como se outras formas de expressão das identidades não tivessem valor pela sociedade e, portanto, precisariam ser anuladas”, diz.
Histórico
Hoje, apesar de intensamente criticada por professores e estudantes, a educação cívico-militar tem sido uma das principais bandeiras do governador Ratinho Júnior (PSD) no Paraná. Em 2022, Ratinho Júnior, que é apoiador de Amaral na corrida pela Prefeitura, instituiu o Programa Colégios Cívico-Militares.
Atualmente, o estado possui 312 escolas cívico-militares, com 635 monitores, entre bombeiros e policiais militares, 11.579 turmas e 190.144 estudantes. A maior parte está localizada na capital, Curitiba, com 29 unidades, seguida por Londrina, com 21 estabelecimentos.
De acordo com o mandatário do Palácio do Iguaçu, a expectativa é chegar a 400 escolas cívico-militares no Paraná. A medida vai na contramão da adotada pelo MEC (Ministério da Educação). Em julho deste ano, o governo federal publicou decreto revogando o PECIM (Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares), criado em 2019, sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Com a medida, a decisão da manutenção das escolas cívico-militares ficou a cargo dos governadores. Ou seja, aqueles que optarem por manter o modelo, devem custear com recursos dos próprios estados. Desde então, os valores destinados por Ratinho à iniciativa tiveram aumento expressivo, saltando de R$ 26,9 milhões em 2023 para R$ 48 milhões em 2024.
A remuneração paga aos policiais aposentados que trabalham nas escolas cívico-militares também cresceu, passando de R$ 3,5 mil para R$ 5,5 mil mensais. O valor é superior ao estabelecido pelo piso nacional do magistério, R$ 4.580,57.
Em abril deste ano, a AGU (Advocacia Geral da União) afirmou, em parecer ao STF (Supremo Tribunal Federal), que o modelo adotado no Paraná é inconstitucional.
Projeto sem evidências
Há, contudo, uma diferença entre escola militarizada, proposta pelo candidato, e escola cívico-militar em andamento no Paraná e outros estados como São Paulo. Na primeira, a responsabilidade da gestão está a cargo do Exército Brasileiro. Na segunda, o comando é efetuado pelos Batalhões das Polícias Militares Estaduais.
Marlei Fernandes, secretária de Assuntos Jurídicos da APP-Sindicato e vice-presidenta da CNTE, explica que não há no país nenhuma perspectiva para a implantação de escolas militares desde educação infantil. “É um tema muito polêmico, nós temos escolas militares fundadas há muitos anos, mas elas são voltadas aos últimos anos do ensino fundamental [6º ao 9º ano] e ensino médio, e temos também, neste último período, as chamadas escolas cívico-militares”, assinala.
Atualmente, existem 42 instituições militares ligadas às Forças Armadas, sendo 24 da Marinha, 15 do Exército e três da Aeronáutica. As instituições seguem a LDB (Lei de Diretrizes e Bases), que estabelece as normas da educação brasileira, mas com normas próprias. O formato se destaca por exaltar a disciplina, o patriotismo e civismo.
Diferentemente das escolas cívico-militares em que o estudante só precisa se matricular para ter acesso à educação, nas escolas militares, projeto defendido pelo candidato, o aluno precisa passar por um processo seletivo específico, pois cada corporação tem um procedimento próprio de admissão.
A busca por essas instituições é feita principalmente por quem tem interesse em seguir carreira nas Forças Armadas. Filhos de militares também podem estudar nas instituições em vagas reservadas para atender especificamente a este público.
“As escolas militares mais antigas têm uma característica de estudantes que são, majoritariamente, filhos de militares e alguns estudantes da comunidade em geral, mas nós não temos no país nenhuma característica de criação de escolas municipais militares. Aliás, nós temos ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema e também o governo federal extinguiu o decreto de criação de novas escolas cívico-militares ou mesmo escolas militares. Para nós, obviamente, da CNTE e da APP é uma proposta absurda, não temos como corroborar com uma proposta dessa”, observa Fernandes.
Pedagogia da perseguição
Conforme informado pelo Portal Verdade, durante ato realizado em novembro de 2023, alunos de colégios cívico-militares, em Londrina, denunciaram uma série de violências. Os relatos indicaram uma pedagogia da perseguição, visto o aumento de repressão no cotidiano escolar, o que tem levado ao crescimento da evasão e adoecimento dos estudantes e docentes (relembre aqui).
Entre as principais consequências, professores e gestores indicam que, com a adoção do modelo, ocorre o cerceamento da autonomia docente e da gestão democrática da educação, princípios garantidos pela Constituição Federal de 1988.
“Com relação aos docentes e demais trabalhadores da educação, o impacto é, principalmente, na quebra de sua autonomia pedagógica, da autonomia docente, da organização do trabalho pedagógico. A educação é garantida constitucionalmente como um princípio democrático, de gestão democrática e ao implantar um modelo militarizado, cívico-militar, esse princípio já sofre uma violação”, afirma Santana.
“Essa proposta precisa ser derrotada pela sociedade, com todas as suas forças, porque é transformar a nossa sociedade em uma realidade pautada por princípios da exclusão, meritocracia, superioridade de grupos, e não aquela sociedade que nós lutamos tanto para construir, com a emancipação de cada cidadão e cidadã, uma sociedade fundamentada em bases democráticas, da liberdade de expressão, uma sociedade diversa e não padronizada”, conclui.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.