Cerca de 17 escolas do Paraná relataram ameaças de fechamento, redução de turmas e falta de consulta prévia à comunidade
Nos últimos três anos, aproximadamente 17 escolas do campo no Paraná buscaram o apoio da Articulação Paranaense por uma Educação do Campo, das Águas e das Florestas (Apec) relatando ameaças de fechamento, redução de turmas e turnos, além de mudanças na organização pedagógica e nas condições de trabalho docente, muitas vezes feitas sem consulta prévia à comunidade.
Micheli Gnoatto Fornazari, estudava em uma escola do campo na cidade de Pranchita, no Sudoeste do Paraná, quando recebeu a notícia de que a instituição seria fechada. “A gente ficou com medo e tristes. Foi realizada uma reunião com a comunidade e nossos pais decidiram pelo não fechamento da nossa escola, mas fechou. Depois disso fui transferida para o colégio da cidade”, conta a estudante.
O fechamento das escolas do campo é uma realidade crescente. Um levantamento do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec) aponta que, entre 2002 e 2022, foram encerradas 155.383 instituições em todo o Brasil. Desse total, quase 50 mil estavam em áreas urbanas, enquanto 106.410 eram localizadas em zonas rurais.
“O fechamento das escolas do campo tem consequências diretas para os estudantes e desarticula as comunidades”, afirma a professora de Licenciatura em Educação do Campo, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Maria Isabel Farias. “A decisão de fechar a escola nunca deveria ser a primeira opção. Temos que entender primeiro o que aquele local representa para a comunidade”.
No Brasil, há 5.565 municípios, dos quais 4.426 possuem alunos matriculados em instituições de ensino do campo. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2023, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 89% das matrículas no país estão concentradas em áreas urbanas, enquanto apenas 11% estão em áreas rurais. Essa disparidade reflete o caráter excludente e as dificuldades enfrentadas pelas escolas do campo, que continuam em uma realidade de abandono e precarização.
Esse cenário ajuda a explicar porque a escolaridade no campo brasileiro permanece inferior à das cidades. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), do IBGE, a taxa de analfabetismo nas áreas rurais é de 18%, comparada a de 5% nas áreas urbanas. A média de anos de estudo também é mais baixa no campo (8,7 anos) em comparação às cidades (11,6 anos).
Educação do campo é um direito
A educação do campo é um direito garantido pela Lei Federal 9394/1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação (LDB). O artigo 28 da lei determina que a educação básica deve ser oferecida às comunidades rurais com as adaptações necessárias para atender às peculiaridades regionais. Essas escolas são essenciais para trabalhadores rurais, crianças e adolescentes que não têm acesso às unidades de ensino nas cidades.
No Paraná, a resistência ao fechamento ocorre anualmente, porém sem avanços significativos no fortalecimento das escolas do campo. O cenário se agrava com a precariedade das estradas e do transporte escolar, falta de investimentos em alimentação, contratos temporários e precários de funcionários e a deterioração da infraestrutura das instituições. A gestão administrativa dos municípios e dos Núcleos de Educação da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed) recorre ao argumento da “ineficiência numérica”, destacando a baixa quantidade de alunos matriculados como justificativa para fechar turmas, turnos e até colégios inteiros.
A política de fechamento das escolas do campo no Paraná não apenas nega o direito à educação pública na área de origem, mas também ignora as legislações federais e estaduais que asseguram esse direito. Segundo a Apec, esse movimento de encerramento das escolas ocorre sem diálogo com as comunidades afetadas, violando a Lei 12.960/2014, que prevê a participação da comunidade nas decisões sobre o fechamento de instituições de ensino, e o Artigo 28 da LDB, que orienta a oferta de educação específica para as zonas rurais.
Entre as escolas já fechadas, mapeadas pela Apec, estão: Colégio Estadual do Campo Madre Cândida (Arapuã), Escola Municipal do Campo de Macacos (Prudentópolis), Escola do Campo de Água Clara (Irati), Colégio Estadual do Campo Jangada Taborda (Cascavel), Escola Estadual do Campo Duque de Caxias (Salgado Filho), Escola Estadual do Campo Júlia Folda (Marquinho), Escola Estadual do Campo Buriti (Nova Laranjeiras) e Colégio Estadual do Campo Carlos Augusto Miranda Nichols (Santa Mariana). Além disso, a Escola Estadual do Campo Pio X, em São Jorge D’Oeste, enfrentou ameaças de fechamento. Outras escolas, como o Colégio Estadual do Campo Professora Kamila Pivovar da Cruz e o Colégio Estadual do Campo Patrimônio São Miguel, em Wenceslau Braz, tiveram o fechamento do turno noturno e da oferta do ensino médio.
Atualmente, o estado do Paraná conta com 534 instituições na modalidade campo, que estão organizadas conforme a demanda da comunidade e a quantidade de matrículas. A Seed informou em nota ao Brasil de Fato Paraná que a cessação das atividades ocorre “quando necessário”, devido à redução de matrículas e em consonância com a garantia do atendimento educacional na unidade mais próxima.
A Secretaria informou que o processo de cessação ocorre no período de planejamento escolar e é, sim, submetido à comunidade as informações acerca do processo. Para o ano de 2025, o planejamento ainda está em fase de análise.
Deslocamento forçado
A decisão de fechar escolas do campo não acompanha, proporcionalmente, a queda no número de matrículas nessas regiões. Dados do Inep mostram que, entre 1997 e 2018, o total de estudantes matriculados em áreas rurais caiu de 7.406.217 para 5.473.588, uma redução de 26%. No entanto, a taxa de fechamento alcançou 58% no mesmo período, revelando que a maior parte das instituições encerradas eram pequenas e foram eliminadas em um processo de redistribuição de alunos, conhecido como nucleação.
Uma consequência direta da nucleação é o aumento da distância entre a residência dos estudantes e a nova escola, agora em áreas urbanas ou rurais distantes. Essa mudança impacta diretamente o cotidiano das crianças e adolescentes do campo, que enfrentam longas jornadas para acessar a educação. “Com o fechamento das escolas do campo, a distância entre a casa do estudante e o colégio na cidade chegou a dobrar ou até triplicar, em alguns casos. O que antes era no máximo oito quilômetros de distância agora se tornou 16 km ou 24 km só de ida. O que demorava 15 minutos agora demanda mais de uma hora de deslocamento”, descreve Jones Fernando Jeremias de Lima, coordenador da Apec.
O deslocamento prolongado contribui para a fadiga física e mental dos alunos e impacta diretamente sua pontualidade, assiduidade e carga horária escolar. Sem um planejamento cuidadoso, o fechamento dessas escolas torna-se uma medida que ignora o impacto do deslocamento sobre a aprendizagem e a qualidade de vida dos estudantes.
Essas longas viagens diárias forçam crianças e adolescentes a saírem de suas casas muito cedo para estudar em locais onde, além de enfrentarem o cansaço do trajeto, convivem com a falta de acolhimento e, em alguns casos, até com o preconceito nas escolas urbanas. Esse distanciamento do território, segundo especialistas, prejudica o desenvolvimento da identidade e do vínculo comunitário dos estudantes.
Turmas multisseriadas
Em 2019, a Seed emitiu uma Minuta de Resolução que determinava a organização das escolas do campo com menos de 35 alunos nos anos finais do Ensino Fundamental (EF) em turmas multisseriadas — onde alunos de diversas idades e anos escolares compartilham o mesmo ambiente de ensino. A medida, que também previa o fechamento de colégios com baixa matrícula, resultou no aumento constante do número de instituições encerradas no estado. Para educadores dessas unidades, essa política vem intensificando a evasão escolar e ameaçando a estabilidade das comunidades locais, que enfrentam o risco do êxodo de jovens em direção às cidades.
“Infelizmente, as escolas multisseriadas acabam sendo o ‘bode expiatório’ dessa situação. Elas são abandonadas pelas gestões educacionais e se tornam muito precárias em termos de infraestrutura, metodologia e materiais pedagógicos. Tudo favorece para que o gestor apresente um plano de fechamento e a constituição de uma escola nucleada”, comenta o coordenador da Apec.
A Apec identificou diversas instituições no Paraná que foram reestruturadas em regime multisseriado, incluindo o Colégio Estadual do Campo Joana D’Arc, em Araruna, e a Escola Estadual do Campo Barão do Rio Branco, em Pranchita, além de outras unidades em São Jorge D’Oeste e Prudentópolis.
Segundo o Inep, classes multisseriadas reúnem alunos de diferentes níveis de ensino em uma mesma sala, independentemente do número de professores responsáveis. Contudo, a ausência de formação específica e de apoio pedagógico adequado para esses profissionais coloca em desvantagem as escolas do campo, onde essas turmas são geralmente adotadas por falta de alternativas.
As classes multisseriadas poderiam representar uma inovação educacional, adaptando o ensino às características das comunidades locais. No entanto, na prática, elas se tornam um reflexo da precarização das políticas educacionais, que veem na diversidade uma justificativa para desigualdades, ao invés de uma oportunidade para fortalecer o ensino no campo.
Escolas salvas por decisões judiciais
Em 2024, o governo Ratinho Jr. enfrentou mais um revés legal com uma decisão liminar da Vara da Infância e da Juventude de Terra Roxa, que suspendeu o fechamento da Escola Estadual do Campo Professora Maria Cristina Diniz da Cunha, localizada no distrito de São José, em Terra Roxa, no oeste do Paraná. A liminar foi concedida em resposta a uma ação civil pública do Ministério Público, após mobilização da APP-Sindicato e protestos de pais de alunos da instituição.
A escola, que teve suas atividades interrompidas no final de 2023, foi fechada contra a vontade da comunidade e sem o cumprimento do devido processo legal. Esse episódio representa mais uma derrota judicial na série de fechamentos realizados pelo governo estadual. Em janeiro, outra liminar determinou a reabertura da Escola do Campo Jangada da Taborda, em Cascavel, com o juiz estipulando multa ao governador caso a decisão não fosse cumprida.
Em dezembro, a Justiça também impediu o encerramento das atividades do Ceebja Maria Antonieta Scarpari, de Goioerê, enquanto, em janeiro, determinou a continuidade do Ceebja de Dois Vizinhos, no sudoeste do estado.
Além das decisões judiciais, em janeiro, o Ministério Público emitiu uma recomendação para reabrir turmas de ensino médio noturno em Moreira Sales, alertando que o fechamento de classes contribuiu para a evasão escolar e violou direitos de adolescentes que trabalham durante o dia.
Em fevereiro, mais escolas voltaram a funcionar, entre elas a Vista Gaúcha e a Barão do Rio Branco, na área rural de Pranchita, após uma decisão da Vara da Infância e da Juventude de Santo Antônio do Sudoeste, que também respondeu a um pedido do Ministério Público, motivado por ações da APP-Sindicato e mobilizações da comunidade escolar.
“Agora nós temos que pensar qual é a nossa proposta para a educação do campo, porque sabemos que o fechamento de colégios impacta profundamente as comunidades”, destaca a especialista em Educação do Campo e Desenvolvimento, Maria Isabel Farias. “Provavelmente neste final de ano a Seed vai divulgar quais são as escolas que eles pretendem fechar e nós precisamos dialogar com a comunidade e entender se o fechamento é o melhor caminho”.
Defesa da educação do campo
Nos últimos anos, estudantes de escolas do campo no Paraná têm enfrentado a política de fechamento desses estabelecimentos promovida pelo governo Ratinho Junior (PSD). A medida reflete uma tendência que se alastra pelo país nas últimas duas décadas. Frente a essa realidade, o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC) tem se mobilizado para garantir que o Plano Nacional de Educação 2024-2034 (PNE), em tramitação no Congresso Nacional, assegure a continuidade desse tipo de ensino.
Durante a Conferência Nacional da Educação (Conae) 2024, realizada entre os dias 28 e 30 de janeiro em Brasília, propostas vindas de todos os estados brasileiros foram debatidas com vistas à formulação do novo PNE. Em uma conquista inédita, a Educação do Campo, representada por movimentos organizados, conseguiu incluir diretrizes voltadas ao seu fortalecimento, que poderão se tornar metas no plano.
O Documento Base do PNE, aprovado pelos participantes da Conae, inclui diretrizes para que as escolas do campo sejam reconhecidas com normas próprias no Sistema Nacional de Ensino. Entre os principais pontos estão a garantia de financiamento, a criação de diretrizes curriculares específicas, e o respeito às atividades e particularidades culturais, econômicas e religiosas de cada comunidade, sem restrições ao calendário civil.
Outras propostas visam promover a equidade no acesso e na qualidade das escolas do campo, especialmente em áreas atendidas por turmas multisseriadas e que atendem populações entre os 25% mais pobres, incluindo grupos historicamente vulneráveis, como quilombolas, indígenas, ribeirinhos e refugiados, entre outros.
Além do PNE, está em análise no Senado um projeto de lei do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) que estabelece critérios para o fechamento de escolas em áreas rurais, bem como em comunidades indígenas e quilombolas. Segundo o senador, a proposta (PL 3.091/2024) visa garantir que a educação, reconhecida como um direito fundamental dessas populações, receba a devida atenção do poder público.
O texto da proposta determina que o fechamento de escolas nessas comunidades só poderá ocorrer após a manifestação do órgão normativo do sistema de ensino, que deverá apresentar uma justificativa detalhada e um diagnóstico da situação. Esse diagnóstico incluirá uma análise do impacto pedagógico, social e cultural da medida, além de um estudo sobre a capacidade das escolas mais próximas de absorver os alunos afetados. A consulta à comunidade escolar será obrigatória, garantindo que a decisão seja tomada com ampla participação dos moradores, em um processo que pode durar até 90 dias.
Caso o diagnóstico indique a necessidade de fechamento, a comunidade e os gestores terão um prazo de um ano para buscar soluções alternativas. Somente após esse período, e na persistência dos problemas, o órgão de educação poderá prosseguir com o processo de fechamento.
Com caráter deliberativo e vinculante, o documento aprovado espera-se que o Ministério da Educação (MEC) leve essas propostas em consideração para a formulação do novo PNE. A expectativa é que o projeto de lei seja encaminhado ao Congresso ainda este ano, definindo as diretrizes da educação brasileira para a próxima década.
Fonte: Brasil de Fato