SindSaúde-PR está pautando o repasse no Conselho Estadual de Saúde. Entidade classifica medida como retrocesso no tratamento à dependência química
No último 25 de outubro, o governador Ratinho Júnior (PSD), anunciou o repasse anual de R$ 10 milhões para comunidades terapêuticas, espaços destinados a pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas.
A informação foi divulgada pelo SindSaúde-PR (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Serviço Público de Saúde do Paraná), que criticou a medida, por reforçar um modelo voltado à punição e não necessariamente a recuperação.
“Paralelamente ao enfraquecimento da rede pública, há um grande aumento da oferta de vagas nas chamadas comunidades terapêuticas, instituições que frequentemente reproduzem práticas manicomiais que já deveriam ter sido superadas, submetendo pacientes ao isolamento e estigmatização”, alerta o coletivo em nota (acompanhe aqui).
As comunidades terapêuticas propõem que a pessoa em situação de sofrimento psíquico e dependência interrompa completamente o consumo de álcool e outras drogas a partir do modelo da abstinência. Uma vez dentro, os pacientes cessam o vínculo com a comunidade exterior. A convivência passa ser restrita e determinada pela própria instituição.
“As comunidades terapêuticas, não é à toa, que elas são conhecidas hoje como os novos manicômios. São instituições frequentemente muito isoladas, fechadas, que impõem várias restrições de sociabilização, de comunicação. Muitas vezes essas comunidades não têm equipes adequadas de saúde mental. Isso não poderia acontecer. E, de um modo geral, elas reproduzem várias das práticas de estigmatização, de isolamento, de desrespeito à autonomia das pessoas”, explica Amanda Galerani Thomaz, psicóloga, diretora do SindSaúde-PR.
Historicamente, a administração das comunidades terapêuticas no Brasil está nas mãos de movimentos religiosos, com maior destaque para iniciativas privadas vinculadas à fé católica ou de matriz evangélica.
“A questão do uso de drogas, do abuso de drogas, é muito complexa, envolve várias dimensões, mas é acima de tudo reconhecido pela OMS [Organização Mundial de Saúde] como uma questão de saúde. E como uma questão de saúde, deve ser tratado em serviço de saúde. Na prática, as comunidades terapêuticas hoje não compõem a rede de atenção de saúde. São normalmente entidades privadas, muitas vezes com um vínculo religioso”, reforça a liderança.
Último mapeamento do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) contabilizou cerca de duas mil comunidades terapêuticas, organizações privadas sem fins lucrativos, espalhadas por todo o país. Ainda de acordo com o Instituto, 82% delas possuem orientação religiosa, sendo 47% evangélicas e 27% católicas.
Apesar de não fazerem parte do SUS (Sistema Único de Saúde) ou mesmo do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), as comunidades terapêuticas passaram a integrar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, em 2019. Com isso, abriu-se uma janela para facilitar a contratação dessas empresas pela União, facilitando repasses públicos.
Dados levantados pela Frente Parlamentar da Saúde Mental, que atua na Câmara dos Deputados, identificaram que ao menos 288 comunidades terapêuticas receberam recursos do governo federal entre 2019 e 2022, período que marca a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Do total, porém, mais de 14% não previam a contratação de médicos, e outros 28% não citavam a inclusão de psicólogos ou demais profissionais de saúde mental em seus quadros. Em 2020, 27 mil pessoas foram acolhidas nessas comunidades, chegando a um investimento de mais de R$ 130 milhões naquele ano.
Em junho deste ano, o Conselho Nacional de Assistência Social decidiu não reconhecer comunidades terapêuticas como organizações sociais. Dessa forma, essas entidades não poderão mais ser financiadas com recursos públicos destinados à área.
Luta Antimanicomial
Uma das principais divergências do SindSaúde-PR refere-se ao desmantelamento de conquistas importantes adquiridas através da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216). O marco destaca que a internação, em qualquer modalidade, só deve ocorrer quando todos os outros recursos tiverem sido esgotados, e pelo menor tempo possível.
“Frequentemente, sai matéria sobre denúncia de tortura, de trabalho análogo à escravidão em comunidade terapêutica, de intolerância religiosa. Afronta tudo que a gente conseguiu construir de avanço no cuidado às pessoas em sofrimento mental. Então, é muito grave”, avalia Amanda.
Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, de 2017, elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Ministério Público Federal, aponta que dos 28 estabelecimentos visitados, localizados em diferentes regiões do país, em todos foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos (confira documento na integra aqui).
Entre os abusos, foram identificados emprego de internações involuntárias e compulsórias por tempo indeterminado; aumento da “laborterapia” (trabalho forçado); privação de sono, supressão de alimentação e uso irregular de contenção mecânica (amarras) ou química (medicamentos).
A legislação acrescenta, ainda, que é proibido o internamento em instituições asilares – aquelas que não oferecem atendimento integral em saúde mental. Essas entidades devem incluir serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, entre outros.
“Essas instituições não oferecem atendimento integral em saúde mental, ou seja, não tem uma equipe multiprofissional que faz esse tratamento. Quando a gente pensa hoje nas comunidades terapêuticas, várias delas não têm essas condições”, observa a diretora.
Também de acordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, pacientes devem ser tratados com humanidade e respeito, ter direito a receber informações sobre seu tratamento, livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, garantir o sigilo e a reinserção comunitária.
“A defesa da luta antimanicomial, aonde a gente também se reconhece, é de que o tratamento a essas pessoas, seja um tratamento de saúde, respeitando a dignidade, a autonomia, o cuidado em liberdade, no território onde a pessoa está. A gente teve vários relatos, várias denúncias, inclusive, de situações extremamente degradantes no Brasil, de tortura, de uma realidade que tinha situações muito graves acontecendo e muito distante de um verdadeiro tratamento de saúde, um cuidado em saúde, como a gente prega que deve acontecer”, adverte Amanda.
Rede de Atenção Psicossocial desmantelada
De acordo com o Palácio do Iguaçu, o recurso será destinado através do Programa de Atenção às Pessoas em Situação de Uso Prejudicial de Álcool e Outras Drogas, vinculado à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e Família, e não via Secretaria de Saúde. Para Amanda, a decisão enfraquece a abordagem da dependência como uma questão de saúde pública. Além disso, ela destaca que a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) enfrenta crescente sucateamento no Paraná.
“A gente se depara com uma realidade de que, infelizmente, são poucos serviços, a gente sabe que são insuficientes. O ideal era que as pessoas pudessem ter acesso de qualidade no posto, no CAPS [Centros de Atenção Psicossocial], nos serviços próximos de casa, mas às vezes não conseguem. As equipes dos serviços hoje, elas estão muito reduzidas. A gente conversando com trabalhadores dos CAPS, por exemplo, é frequente a queixa”, adverte.
A RAPS foi criada pelo Ministério da Saúde em 2011 (Portaria nº 3.088). Ela é composta por diferentes serviços, incluindo Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial, Consultórios na Rua, serviços de urgência e emergência, centros de convivência, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, e vários outros, com o objetivo de oferecer cuidado integral e prevenir o internamento.
“De fato foi construída uma Rede de Atenção Psicossocial, formada por vários serviços de cuidado nos diferentes níveis, desde a atenção básica, do posto de saúde, onde a pessoa é acompanhada diretamente no território, também tem os centros de atenção psicossocial, que são mais especializados nessas demandas [de saúde mental], onde as pessoas também fazem o acompanhamento integrado ao território, pensando na questão da reinserção psicossocial”, indica.
Ainda, segundo Amanda, a Rede de Atenção Psicossocial tem sido adotada em oposição aos hospitais psiquiátricos, ambientes também marcados por uma série de violências. Um dos casos mais conhecidos, é Manicômio de Barbacena, que ganhou a alcunha de “Holocausto Brasileiro”, devido aos abusos relatados.
O Manicômio de Barbacena tinha como alvo indivíduos que desviavam dos padrões desejados pela sociedade elitista brasileira, como presos políticos, comunidade LGBTQIA+, prostitutas, negros e indígenas, sendo que praticamente 70% dos pacientes não apresentavam problemas psiquiátricos. Cerca de 60 mil pessoas morreram no Hospital.
“A gente tem um avanço muito importante na rede de atenção à saúde mental no Brasil. Só que quando a gente vai para a prática, quando a gente olha os serviços que compõem a rede no Paraná hoje, a gente sabe que eles ainda são muito insuficientes. São poucos serviços, principalmente, face ao crescimento da demanda. As equipes, tanto no posto de saúde, nos CAPS, como também nos hospitais e diversos setores, de modo geral, elas estão bastante sobrecarregadas”, relata.
Amanda também chama atenção para o aumento das admissões terceirizadas que, além de precarizar ainda mais as condições de trabalho, afeta a qualidade do serviço prestado à população. “A nossa defesa, é que haja aumento de investimento em saúde, na Rede de Atenção Psicossocial. Mais serviços que atendam, que estejam mais capilarizados, que tenham mais profissionais qualificados, enfim, que possam ter a estrutura adequada para o atendimento”, compartilha.
Atualmente, o Paraná conta com apenas 14 CAPS infantojuvenis e 25 CAPS AD, estes últimos são dedicados exclusivamente ao tratamento de dependência de substâncias psicoativas. “A gente acha que essa rede deveria ser aumentada, ampliada e não é o que a gente tem verificado. A gente teve, esse ano, três novos CAPS credenciados no Paraná. É muito pouco frente à demanda que a gente enfrenta”, alerta.
Em outubro, a ALEP (Assembleia Legislativa do Paraná) aprovou, em primeira discussão, o projeto de lei nº 771/2023, que institui o “Dia das Comunidades Terapêuticas” no calendário oficial do estado. A iniciativa é da Frente Parlamentar em Apoio às Comunidades Terapêuticas, Cuidados e Prevenção às Drogas, coordenada pelo deputado Gilson de Souza (PL).
Superação de estigmas
Amanda evidencia a necessidade de um olhar mais aprofundado sobre a dependência química, que perpassa também o acesso a direitos fundamentais como geração de emprego e renda. Estudos constatam que as famílias que vivem em situação de exclusão social são vulneráveis a problemas relacionados ao abuso de substâncias psicoativas.
“Questões relacionadas ao sofrimento psíquico, ao uso prejudicial de substâncias, qualquer uma dessas questões tem relação direta com as condições de vida das pessoas. E disso eu estou falando de condição de saúde, educação, acesso a trabalho digno, renda, moradia adequada, e quando a gente olha para a realidade da nossa sociedade, essas condições são extremamente desiguais”, avalia.
O isolamento e a crise financeira, decorrentes da pandemia de Covid-19, geraram um aumento no número de dependentes químicos no país. O SUS registrou um aumento de 54% no atendimento a dependentes químicos em 2020 se comparado ao ano anterior. Os dados de mortalidade também aumentaram: foram 8 mil óbitos em comparação às 6.445 notificações registradas em 2019.
Em escala global, pesquisa da OMS, indicou que mais de 3 milhões de pessoas morrem por ano devido ao abuso de substâncias como álcool e drogas. Uma das conclusões foi de que as políticas de tratamento e prevenção no mundo inteiro são insuficientes.
Para a psicóloga, a opção do governador Ratinho Júnior de privilegiar as comunidades terapêuticas reforça as lógicas de isolamento, não contribuindo para a efetiva ressocialização. “Quando o estado coloca como oferta de atendimento a essa população, a comunidade terapêutica, é mais uma forma de vulnerabilizar, de estigmatizar essa população que, antes disso, já teve várias negligências e omissões do estado”, assinala.
“A gente defende a ampliação da rede de atenção de cuidado à saúde, o tratamento digno.. Gostamos de lembrar, trancar não é tratar”, conclui Amanda.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.