Medida é considerada simplista e criminalizatória. Entidades afirmam que estão atentas a possíveis violações de direitos humanos
A operação “Choque de Ordem”, implementada pelo prefeito Tiago Amaral (PSD) na última sexta-feira (3), em Londrina, tem chamado atenção do Movimento Nacional da População de Rua, entre outras entidades e lideranças estaduais e locais, que estão vigilantes quanto aos reflexos da medida considerada insatisfatória para solucionar questões complexas que permeiam a segurança pública.
Integrando efetivos da GM (Guarda Municipal) e PM (Polícia Militar), a atividade prevê o patrulhamento intensivo na região central da cidade. Além da presença de viaturas no Calçadão, os agentes têm percorrido imóveis demolidos, vazios, muitos deles ocupados por pessoas em situação de rua e dependentes químicos. Uma das principais críticas é que as abordagens não são acompanhadas por equipes de saúde e assistencial social.
André Luiz Barbosa, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua em Londrina, representante do Comade (Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Álcool) compartilha que uma das principais preocupações decorrente da iniciativa é a tentativa de criminalização dos moradores em situação de rua.
“A união da GM, da PM não tem que vir só em prol da população em situação de rua, ela tem que vir em um contexto geral. Se você achar o morador em situação de rua com uma arma de fogo na mão, com certeza tem que tomar as medidas cabíveis, mas não é só o morador em situação de rua, é qualquer cidadão brasileiro que não esteja autorizado para carregar uma arma. Se o morador em situação de rua estiver cometendo um fato ilícito que seja julgado, mas esta postura deve ser a mesma com qualquer cidadão brasileiro que esteja cometendo uma infração”, diz.
Lorena Ferreira Portes, assistente social, professora do Departamento de Serviço Social da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e vice-presidenta do Sindiprol/Aduel, também chama atenção para o caráter repressivo e criminalizatório da operação.
“A eleição de Tiago Amaral para a Prefeitura de Londrina representou a defesa de interesses privatistas, de valorização do agronegócio, de enxugamento do Estado no campo da proteção social, do enaltecimento de instituições tradicionais como a igreja e a família e do alicerce repressivo (forças de segurança) para responder as contradições sociais inerentes à sociabilidade burguesa”, avalia.
Questionada pela reportagem se o nome da operação causava estranhamento, a docente salienta a natureza higienista da ação.
“O foco imediato da ação moralizadora e de criminalização está sendo as pessoas em situação de rua e, de forma geral, os/as trabalhadores/as que vivem em situação de pobreza e estão submetidos aos efeitos da desigualdade social. Com o discurso de ‘salvar’ a sociedade londrinense dos perigos, da perturbação da ordem, dos desvios das normas sociais, de corrigir as disfuncionalidades em nome de uma harmonia e desenvolvimento social e econômico, instaura uma política punitiva e higienista que combina repressão policial e moral”, analisa.
Ainda, a liderança reforça o desmonte do estado de bem estar social ao passo que as múltiplas desigualdades, que dependem de políticas públicas nas diferentes áreas de saúde, educação, moradia, são simplificadas, ou seja, tratadas através de uma visão policialesca e repressiva, que só atende interesses eleitoreiros.
“As demandas sociais (como desdobramentos das manifestações da ‘questão social’) serão tratadas e respondidas não pela via das políticas sociais, mas como caso de polícia. É uma verdadeira regressão no campo dos direitos sociais e das políticas sociais que foram conquistados e construídos nas últimas décadas”, observa.
“Recuperando a combinação repressão policial e moral, assistiremos a um retorno de práticas policialescas, de refilantropização que será evidenciada pelo reforço de ações voluntárias, de desprofissionalização, de atuação religiosa, de moralização da ‘questão social’, de ataques aos direitos humanos e de recuo de investimentos econômicos para alargar a intervenção estatal nas políticas sociais”, acrescenta.
Barbosa, que foi morador em situação de rua por mais de duas décadas lembra que, em 2019, uma pesquisa conduzida pelo projeto Práxis Itinerante vinculado à UEL, em parceria a Unopar, Ministério Público de Londrina, Defensoria Pública, Secretaria Municipal de Assistência, identificou 930 pessoas em situação de rua na cidade (acompanhe relatório na íntegra aqui).
Porém, com a pandemia de Covid-19 e o aumento das desigualdades sociais, a probabilidade é que esse número tenha aumentado. A estimativa é que, hoje, aproximadamente 1.500 pessoas estejam vivendo pelas ruas de Londrina.
Ainda, ele pontua que, cerca de 70% da população em situação de rua é formada por pessoas que vem de outras cidades, ou seja, de cada dez moradores, sete não são naturais de Londrina. Para André, este número expressa o fortalecimento das políticas públicas voltadas ao acolhimento das pessoas em situação de rua nos últimos anos.
“Tem cidade que, infelizmente, deixa muito a desejar, impera a negligência das políticas públicas”, adverte.
Repressão
De acordo com informações divulgadas pela Prefeitura de Londrina, nesta terça-feira (7), em três dias, as equipes da GM e PM percorreram 25 pontos da cidade como praças, a Concha Acústica, Biblioteca Municipal, Bosque Central e Zerão. No período, 136 pessoas foram abordadas, resultando em quatro prisões por tráfico de drogas e no cumprimento de dois mandados de prisão contra foragidos da Justiça.
Em entrevista à Folha de Londrina, o secretário de Defesa Social, Felipe Juliani, afirmou que o escopo da operação não são os “moradores de rua”, mas “criminosos”. Porém, nos imóveis visitados, há grande concentração de moradores em situação de rua.
Barbosa garante que o Movimento Nacional da População de Rua, e demais coletivos que atuam na defesa dos direitos humanos, estão atentos a situações que possam caracterizar abuso de autoridade, entre outras violações como internações compulsórias.
“O internamento compulsório é crime. No primeiro internamento compulsório que fizer, o Ministério Público vai se manifestar e nós também não aceitamos”, alerta.
A internação compulsória só pode ser determinada por um juiz, após pedido formal, feito por um médico, atestando que a pessoa não tem domínio sobre a própria condição psicológica e física.
Carlos Enrique Santana, membro do Centro de Direitos Humanos de Londrina, também considera que o prefeito está “enganado” no caminho escolhido para diminuir a quantidade de moradores em situação de rua no município. “Se descumprir completamente a Constituição, vai chover medidas legais e o Judiciário será obrigado a cumprir a Constituição”, reflete.
Ainda, ele argumenta que é necessário firmar um diálogo mais estreito com as organizações que atuam diretamente com a população em situação de rua, buscando conhecer as demandas que apresentam. “O prefeito tem que prestar atenção no que está fazendo e não impor nada, tem que atuar de forma humana, saber se estas pessoas têm moradia, chances de emprego, saúde de qualidade”, sugere.
Do camburão para o Choque de Ordem
Não é a primeira vez que o, agora prefeito de Londrina, se envolve em polêmicas envolvendo a agenda da segurança pública. Durante sua trajetória como deputado estadual, Amaral ficou conhecido por integrar a “bancada do camburão”.
Em 2015, deputados articulados com o governo Beto Richa (PSDB) tentavam aprovar um “pacotaço” (medidas para cobrir rombos da administração estadual, suprimindo direitos do funcionalismo), quando com receio dos manifestantes que denunciavam as arbitrariedades, chegaram à ALEP (Assembleia Legislativa do Paraná) em um carro do Batalhão de Choque.
“O caminho que será trilhado por esta gestão virá na contramão de princípios democráticos, dos direitos humanos e sociais, de incremento e ampliação de políticas sociais e do alargamento de acesso aos serviços sociais. Demandas sociais, como por exemplo as pessoas em situação de rua, serão consideradas como questão moral que devem ser enfrentadas pelo Estado pela via higienista, de ‘limpeza da cidade’, de retomada da ordem e como caso de polícia”, assinala.
Portes ressalta o conservadorismo presente não só em Londrina, mas em todo o Paraná, cuja uma das características é o apelo à violência no combate a problemas estruturais, o que vulnerabiliza, principalmente, parcelas mais empobrecidas da população.
Setores da direita e extema-direita tem invadido a política institucional, apresentando soluções reducionistas e mobilizando medos de setores da classe média, que anseia por mais segurança, visto os altos índices de criminalidade em todo o país.
Para estabelecer a operação, o prefeito alegou reivindicações de moradores e comerciantes da região central de Londrina.
A professora aponta a necessidade de conscientização, formação e diálogo com a sociedade de maneira ampla a fim de discutir as reais causas da insegurança, que envolvem concentração de renda e oportunidades pelos setores dominantes.
“Para enfrentar esse caldo conservador que não é privilégio de Londrina, mas do Paraná como um todo, temos como tarefa recuperar e reforçar as lutas sociais para não só escancarar as contradições sociais, a desigualdade social que vem se acirrando, as respostas limitadas, coercitivas e criminalizatórias do Estado, mas para articular forças e construir ações que mobilizem os/as moradores/as londrinenses a compreenderem de forma mais crítica as manifestações da ‘questão social’ tão presentes no município”, pondera.
A liderança também pontua que é urgente toda a população estar atenta a mobilizada na defesa dos direitos humanos. “Apesar de reconhecer as limitações da política de assistência social, é importante situar seu papel para a proteção social de uma camada grandiosa da população que vive em situação de miséria, de extrema pobreza e de pobreza, que tem seus direitos sociais e humanos violados constantemente e que são alvo de uma política aguerrida de criminalização”, diz.
“Um processo de politização, de desmascaramento dos verdadeiros interesses do governo que se utiliza de um discurso moral/religioso/repressivo para justificar suas ações voltadas ao mercado, de esvaziamento da atuação pública estatal no campo social. Em relação às pessoas em situação de rua será urgente enfrentar qualquer forma de violação dos direitos humanos e reivindicar uma maior intervenção estatal na proteção social dessa população, condenando e combatendo medidas policialescas e de criminalização”, finaliza.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.