Atividades ocupam diferentes regiões da cidade até o fim do mês
No Brasil, desde 2004, janeiro é considerado o mês da “visibilidade trans”. Contabilizando aproximadamente 3 milhões de pessoas no país, todos os dias esta parcela da população precisa travar uma série de batalhas pela manutenção e ampliação de seus direitos, contra o preconceito e a violência.
Neste período, em diferentes cidades ocorrem ações que buscam recordar lutas, reivindicar garantias e celebrar conquistas obtidas pela comunidade trans.
Em Londrina, a Frente Trans em parceria com o projeto de extensão Práxis Itinerante, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da UEL (Universidade Estadual de Londrina), promovem a Jornada da Visibilidade Trans 2025.
O evento, que conta com apoio do coletivo Entretons e o SEBEC (Serviço de Bem-Estar a Comunidade da Universidades Estadual de Londrina), inicia nesta quinta-feira (16), com a defesa de dissertação de mestrado em Sociologia intitulada “As armas da cisnormatividade contra a linguagem não binária no Brasil: colonialidade, conservadorismo e ação legislativa”, de autoria da estudante Ursula Boreal Lopes Brevilheri, com orientação do professor Fábio Lanza.
A banca aberta ao público, acontece a partir das 14h30, na sala 133 do CLCH (Centro de Letras e Ciências Humanas) da UEL.
Em entrevista ao Portal Verdade, Ursula que também integra a coordenação do projeto Práxis Itinerante, explica que o trabalho analisou as iniciativas de proibição da linguagem neutra no Brasil durante os últimos anos.
A linguagem neutra, também pode ser conhecida como linguagem inclusiva ou neolinguagem, tem como objetivo evitar a exclusão de pessoas com base em sua identidade de gênero e sexualidade.
Entre os achados, a pesquisadora destaca que a modalidade corresponde a uma ampla articulação conservadora, em diferentes regiões do Brasil, sem vinculação direta com um partido específico, apesar da predominância do PL (Partido Liberal).
Ainda, ela evidencia que a ofensiva tem sido empregada por setores da extrema-direita para manipular a população, produzindo notícias falsas e reproduzindo preconceitos em prol de alcançarem melhores resultados nas urnas.
“Consegui demonstrar como toda essa construção contra a linguagem não binária é basicamente uma ficção empregada por atores conservadores que perceberam que gerar pânico na população aumenta seus resultados eleitorais e capital político. Para isso, eles mobilizam um ideário historicamente e colonialmente construído, a cisnormatividade, os valores e acordos societários que supervalorizam corpos cisgênero e relegam corpos trans à exclusão”, pontua.
“A partir desse ‘substrato fértil’, aplicam a lógica do pânico, espalhando inverdades como a ideia que a linguagem não binária seria uma ameaça a língua portuguesa ou às pessoas com deficiência. Uma articulação entre acordos societários consolidados em nossa sociedade e perspectivas políticas que se aproveitam destes valores para convencer a população”, complementa.
Marcha por uma vida digna
Também contempla a programação, a Marcha Trans Por Uma Vida Digna. A atividade acontece no próximo dia 29 de Janeiro, Dia da Visibilidade Trans, com concentração a partir das 18h30, em frente a Pernambucanas, no Calçadão de Londrina.
Ursula indica que a Marcha é um chamado para denunciar os múltiplos obstáculos que impedem as populações trans de acessar direitos fundamentais.
“Algumas pessoas acham que queremos ‘privilégios’, mas na realidade, o desejo de toda pessoas trans é este: viver uma vida digna, com direitos fundamentais como qualquer outra pessoa, condição que foi negada para os nossos ao longo de toda a história do Brasil. Reivindicamos o direito de acesso ao mercado de trabalho sem discriminação, o direito à educação, políticas públicas de saúde e segurança, acesso a cidade, todos estes não garantidos verdadeiramente à população trans”, afirma.
“Se uma travesti quer acessar o mercado de trabalho formal, é discriminada, as pessoas acham que o lugar dela é no subemprego, não dão trabalho, e as pessoas precisam sobreviver. Não é sobre nenhum tipo de acesso diferenciado, é sobre os direitos garantidos na nossa Constituição a toda pessoa. Nos indignamos que nossa população permaneça sem conseguir acessar serviços de saúde, sem conseguir adentrar ou acessar uma universidade, ter que viver uma vida como nem fosse ser humano. Temos direitos como todas as pessoas”, ela complementa.
Devido dificuldades de inserção e permanência, trajetórias como a de Ursula, ainda são poucas. Segundo levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), apenas 0,3% das pessoas trans no Brasil conseguem acessar o ensino superior.
“Mapa das brechas”
Questionada pela reportagem sobre o cenário em relação aos direitos da população trans em Londrina, face à nova gestão de Tiago Amaral (PSD), parlamentar cuja trajetória não demonstra nenhum aceno às pautas que reconhecem a igualdade e diversidade de gênero, Ursula sinaliza a dificuldade de estabelecer um diálogo.
“O início da gestão de Tiago Amaral certamente marca um momento de mais dificuldade de avançarmos discussões sobre a cidadania e direito das pessoas trans, mas não devemos nos enganar de achar que outras gestões, de diferentes esferas, tenham produzido políticas efetivas de encontro às demandas de nossas populações. Seguiremos lutando, buscando as vias possíveis”, compartilha.
Referenciando a escritora e performer trans, Jota Mombaça, Ursula indica a necessidade de criar fissuras na lógica sexista, transfóbica, reivindicando que nenhuma vida vale menos do que outra.
“Eu gosto muito de um trecho da Jota Mombaça que ela fala que neste lugar ‘onde todas as portas estão fechadas’ é onde construímos ‘o mapa das brechas’. Nossas vidas se inserem nesse lugar desde sempre, e todas as conquistas de nossos movimentos até agora são fruto da luta de pessoas trans, e especialmente travestis, que construíram o possível nas brechas da normatividade cisgênero”, reflete.
“Por dentro e por fora do Estado”
Ursula também crítica a falta de representatividade das pessoas trans na política institucional e a precariedade das políticas públicas voltadas ao segmento.
Ela cita as deputadas federais Erika Hilton (PSOL) e Duda Salabert (PDT). As lideranças foram eleitas no pleito de 2022. Pela primeira vez na história, em quase 40 anos de redemocratização e após mais de duas décadas do golpe empresarial-militar, o Brasil tem parlamentares trans ocupando o Congresso Nacional.
“Sou bastante fã, mas em um país tão grande como o Brasil não é possível que haja tão poucos mandatos com pessoas trans”, pondera.
Ainda, para Ursula, a emancipação das pessoas trans não virá somente pela política institucional, visto que historicamente esse foi um dos espaços que reproduziu grande parte das violações contra os corpos trans, porém, ela não desconsidera a importância de ter cadeiras nas prefeituras, câmeras, assembleias.
“Nem em governos ditos ‘progressistas’, nem em governos ‘conservadores’. Apesar disso, é lógico que a política institucional é uma instância importante de luta, e é um espaço que nós devemos permear cada vez mais, até porque eu acredito em uma lógica de avançar pelo máximo de caminhos possíveis, por dentro e por fora do Estado”, assinala.
A programação segue até 31 de janeiro (confira abaixo) e é gratuita, não há necessidade de inscrição prévia.
“Estamos muito animades. Esperamos que seja uma espaço de muito diálogo, muita reflexão, e que nossos debates possam contribuir para a melhoria das condições de vida de toda população trans, promovendo conscientização, mas também gerando ações práticas. Nossa expectativa é que a Jornada não só amplifique as vozes trans, mas também sensibilize instituições e sociedade civil para a urgência de políticas públicas mais inclusivas e eficazes”, afirma.
Ursula classifica a Jornada como um “marco de resistência e esperança” e oportunidade de amplificar o debate não só com a sociedade londrinense, mobilizando contra a transfobia e defesa dos direitos humanos de maneira ampla.
“Também desejamos que este seja um momento de acolhimento e fortalecimento para pessoas trans, reforçando laços de solidariedade e mostrando que, juntes, podemos criar uma sociedade mais justa. Esperamos que este evento inspire novas iniciativas e fortaleça alianças, tanto regionais quanto nacionais, na luta pelos direitos humanos e pela equidade”, conclui.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.