A maioria das pessoas em situação de rua na cidade é composta por homens negros. Ausência de dados oficiais dificulta o estabelecimento de políticas públicas. Acompanhe dados inéditos levantados pelo Portal Verdade
Na última sexta-feira, (19) foi Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Menos de 24 horas depois, na manhã de sábado (20), Adriano Paulino – um homem em situação de rua – morreu durante a madrugada de inverno mais gelada deste ano na capital paulista. A data foi escolhida em memória ao “Massacre da Sé”, ocorrido em 2004. Sete moradores em situação de rua foram assassinados com golpes na cabeça enquanto dormiam na praça da Sé, região central de São Paulo.
Outras oito pessoas ficaram gravemente feridas. Investigações conduzidas à época identificaram que a violência teve como intuito silenciar os moradores em situação de rua que sabiam do envolvimento de policiais com o tráfico de drogas na região. O crime repercutiu em diversas partes do mundo, sendo que no país também levou à construção do Movimento Nacional População de Rua (MNPR).
O grupo teve papel preponderante para que, em 2009, fosse instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A legislação estabelece população de rua como “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
Dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostraram que, em 2020, 221.869 brasileiros viviam nas ruas. Lideranças do Movimento Nacional da População de Rua argumentam que este número é muito maior e pode chegar a meio milhão de pessoas morando nas ruas hoje, considerando o agravamento da crise econômica e aumento da pobreza. A não inclusão da população em situação de rua no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dificulta a produção de dados oficiais sobre este segmento da sociedade e, consequentemente, dificulta o estabelecimento de políticas públicas.
Em Londrina, a estimativa é de que aproximadamente 1.400 pessoas estejam vivendo nas ruas. No final de 2018, eram 930, ou seja, em cerca de três anos, o contingente dobrou. Atualmente, a cidade oferece 330 lugares em serviços de acolhimento. Com o déficit de mais de 1.000 vagas, o munícipio consegue atender somente 23% da população em situação de rua.
Perfil
No final de 2018, investigação nomeada “Pesquisa POP Rua”, realizada por profissionais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria Municipal de Assistência, identificou que 930 pessoas em situação de rua na cidade, sendo que a maioria (81%) deseja sair das ruas. As principais causas apontadas para estarem nesta condição foram: dependência química (42,2%), conflitos familiares (30,9%) e desemprego (25,5%).
Clarice Junges, cientista social, servidora da Prefeitura Municipal de Londrina, atuando na maior parte do tempo no setor da Assistência Social, esteve envolvida no levantamento. Ela evidencia que de lá para cá, o número de pessoas em situação de rua mais que triplicou na cidade, passando de 3 mil atendimentos entre 2020 e 2021. A profissional destaca também a presença majoritária de pessoas negras entre a população de rua local.
“Chama atenção a grande quantidade de pessoas negras vivendo na rua, comparativamente à média geral da população de Londrina. Enquanto na população total, 70% dos londrinenses são brancos e 26% pretos ou pardos (esses dados são do Censo de 2010,) na população de rua só 36% são pessoas brancas, e sobe para 43% as pretas e pardas (ou negras)”.
Vagas
De acordo com Junges, em 2021, eram oferecidos 278 lugares em serviços de acolhimento à população em situação de rua, sendo distribuídas em cinco abrigos e seis repúblicas. “Na época do frio geralmente aumenta o número de vagas, não de abrigo, só de pernoite, e aumenta os horários de atendimento das equipes de Abordagem Social, que fazem os encaminhamentos pra essas estruturas”.
Para Clarice Junges, existe um abismo gigante entre a quantidade de pessoas vivendo nas ruas e a oferta de acolhimento. “Somente uns 10% da demanda é atendida, e ainda existem problemas seríssimos na estrutura de atendimento, tanto física quanto de recursos humanos e financeiros. Isso faz com que seja alta a chamada “evasão”, ou seja, as pessoas, mesmo precisando, não se submetem à precariedade daquilo que lhes é oferecido, e ainda são julgadas e culpabilizadas por isto”, afirma.
Fábio Marques, trabalhador autônomo na área de decoração, deixou Toledo e chegou em Londrina há um mês. Atualmente, ele é uma das pessoas assistidas pelo Centro POP, serviço especializado no atendimento a pessoas em situação de rua na cidade. Ele avalia que a presença na Instituição tem sido uma experiência positiva, mas considera que é necessário ofertar mais espaços com a mesma finalidade: “Eu vejo pela demanda que chega que só aqui é muito pouco para atender Londrina”, avalia Marques.
André Luís Barbosa, estudante de Relações Públicas na UEL, pessoa em superação de situação de rua e, atualmente, integrante do Conselho Municipal de Assistência Social e Conselho Municipal de Álcool e outras drogas, ressalta que Londrina recebe muitas pessoas da região. “Mesmo a nossa cidade não suprindo todas as demandas, na nossa região do norte do Paraná ela está mais avançada. Hoje, a gente acredita que em torno de 60% da população em situação de rua existente na cidade é formada por pessoas que vieram de outras localidades”, ele observa.
A importância das redes
Para Junges, é necessário que princípios estabelecidos em diversos marcos legais (da Constituição Federal de 1988 a Política Nacional para a População em Situação de Rua) a exemplo do respeito à dignidade da pessoa humana, o atendimento humanizado e universalizado e reconhecimento às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência, sejam garantidos pelos poderes públicos.
Além disso, a servidora ressalta que também é preciso assegurar amplo e fácil acesso a políticas de saúde educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, ou seja, é fundamental que seja desenvolvido um trabalho em rede entre as repartições públicas, rompendo com a ideia de que as demandas da população em situação de rua sejam responsabilidades apenas da pasta da Assistência Social.
“O trabalho articulado entre políticas vem acontecendo mais entre Assistência e Saúde, que mantém um Consultório na Rua e Centros de Atenção Psicossocial, que são serviços fundamentais para este público. Também com a política de Educação acontece uma articulação, e a Secretaria disponibiliza uma professora para atuar dentro do Centro POP, realizando oficinas pedagógicas muito apreciadas pelo público atendido. Outro grande avanço é no campo da Cultura: Londrina conta, há 3 anos, com o Projeto Brisa, executado pela FUNCART, que tem patrocínio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura, e que proporciona o acesso à cultura através de saraus artísticos e inclusão na estrutura cultural da cidade. Eu tenho muito orgulho de ter sido a articuladora deste projeto junto à FUNCART, que acolheu a ideia com muito carinho e vem trabalhando muito pela sua continuidade”, avalia.
Para a profissional, uma das áreas que mais precisa de atenção no município, é a oferta de trabalho para as pessoas em situação de rua. “As oportunidades de trabalho para esta população são praticamente inexistentes. Então, é preciso criar programas específicos de capacitação e inserção no mercado de trabalho, investir nisto, porque o trabalho e a renda são necessidades vitais”, afirma Junges.
Falta de profissionais e de centros voltados ao acolhimento mulheres e comunidade LGBTQIA+
Barbosa reforça que além da urgente necessidade de ampliar a quantidade de vagas em abrigos e centros de acolhimento, é fundamental fortalecer o acesso da população de rua a outros direitos. Ele cita o “Consultório na Rua”, instituído pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, o serviço visa ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, ofertando, atenção integral à saúde através de atividades itinerantes.
De acordo com o estudante, hoje, o serviço conta com apenas sete profissionais em Londrina. Ele assinala, ainda, a importância da qualificação dos trabalhadores que assistem à população em situação de rua. “A Secretaria de Assistência Social oferta uma capacitação dos educadores que trabalham nestas instituições [de acolhimento] para que eles não atuem apenas como monitores, mas apliquem medidas socioeducativas, contribuindo para a reinserção destas pessoas no convívio familiar e na sociedade”.
Para Clarice Junges, as principais lacunas no atendimento à população em situação de rua na cidade são a ausência de um serviço de acolhimento institucional feminino e de outro voltado, especificamente, para a comunidade LGBTQIA+. Ela pontua que, em 2021, considerando o público feminino, eram oferecidas 20 vagas em pernoite (a pessoa só pode ficar de noite, tem que sair de manhã, ficando nas ruas o dia todo) e 31 vagas em repúblicas supervisionadas pelo município.
Estigmas
Para André Luís Barbosa, a criminalização das pessoas em situação de rua é uma faces mais perversas, visto que elas não culpa de estarem nesta condição. Problemas sociais como o desemprego, violência, dificuldade de acesso aos cuidados referentes à saúde mental, falta de programas direcionados à habitação para as camadas mais pobres, concentração de renda e aumento da desigualdade social, são elementos que levam as pessoas a viver nas ruas.
Além disso, ele adverte que não devemos generalizar a população em situação de rua, pois embora existam parcelas envolvidas com a criminalidade e substâncias psicoativas, esta condição permeia toda a sociedade, independentemente de classe social. “Assim como existem moradores em situação de rua que fazem coisas erradas, também existem médicos, juízes, repórteres, políticos”.
Para Clarice Junges, outro elemento preponderante para a desconstrução de preconceitos é a atenção a formação e seleção de gestores que tenham disposição de ouvir, interagir e aprender com as pessoas às quais as políticas são destinadas. “E se eles (e ainda mais elas, as mulheres em situação de rua) que sofrem tantas violências pelo fato de estarem nesta situação, ainda são capazes de amar, então quero acreditar que a sociedade (aí incluído o governo) é capaz de encontrar recursos para investir em mais e melhores políticas públicas de atendimento para que nenhuma pessoa tenha que viver na rua, complementa.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.