Preconceito e desinformação dificultam cuidados com a saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres
“Já passei por situações desagradáveis em relação a atendimento médico ao relatar que me relacionava com outras mulheres. Inclusive já saí de um consultório chorando por isso. Naquela ocasião, somente consegui resolver meu problema depois de passar por quatro consultas com médicos diversos. Acredito sim que há uma grande falha na área da saúde em relação a esse atendimento”.
A opinião é da advogada Camila Miller, de Apucarana, norte do Paraná, e evidencia uma dificuldade comum a muitas mulheres lésbicas. Para ela os profissionais deveriam sair das universidades capacitados para atender com qualidade esse público, acompanhando os avanços nos direitos da comunidade. No entanto, nem sempre é o que acontece.
“Talvez cursos de capacitação, ou até mesmo eventos que a própria área da saúde possa promover com os profissionais atuantes e envolvidos com a questão (ajudem)”, sugere Camila.
A desumanização do atendimento levou a artista multimídia Lari Alvanhan, mestranda em Londrina, a se afastar dos consultórios médicos. Atualmente, aos 34 anos, ela não se define mais como lésbica, já que se relaciona com mulheres cisgênero, mulheres transexuais ou homens trans. Enquanto identidade de gênero, no entanto, diz que “sempre vou ser uma sapatão”.
“É uma das dificuldades, ainda mais na minha situação, ter que explicar tudo, o que é uma coisa, o que não é outra. Tem hora que a gente só quer viver normalmente”, relata Lari. Nos últimos anos ela tem se dedicado a cuidar da saúde mental, mas lamenta os obstáculos para obter atendimento integral de saúde.
“Eu faço terapia, vou uma vez por ano a um cardiologista, mas porquê não vou uma vez por ano a um ginecologista? Fui a primeira vez aos 11 anos, logo ao menstruar; dos 11 até os 20 e poucos eram sempre as mesmas perguntas, as mesmas dificudades, tanto pelo plano de saúde quanto pelo SUS”, revela.
“Isso é aterrorizante. Um processo de violação de direitos, direitos do meu corpo, do meu afeto, direito do meu amor”
Para a artista a explicação para o tratamento reside na lesbofobia, “na sapatofobia, na transfobia”. “Falta entender que existem outras formas de se relacionar afetivamente, sexualmente com as pessoas”.
Recentemente Lari recebeu indicação de um profissional considerado humano no atendimento ao público LGBTQIA+ e pretende procurá-lo.
“A dificuldade de chegar a esses profissionais também é muito grande. Tenho amigues que têm todo o sistema reprodutor feminino, que vão ao gineco periodicamente, mas assim, quando acha uma pessoa para te tratar como ser humano a agenda está lotada”, lamenta.
Poliana Santos, ativista dos movimentos sociais em Londrina e educadora da Rede Estadual de Ensino, diz que relatos de atendimentos inadequados são comuns.
“É perceptível através dos relatos o quanto existe ainda muito preconceito dentro dessa área da saúde. Eu nunca passei por isso porque tive o privilégio de ter um ginecologista na UBS onde faço tratamento muito sensível às causas LGBT e ele mesmo já se queixou pra mim do preconceito que existe na área da saúde referente a essas questões”, lamenta.
Na opinião de Poliana, a estrutura social da nossa sociedade machista e patriarcal explica o desconhecimento das próprias mulheres em relação a seus corpos e necessidades. No entanto, o desconhecimento por parte dos profissionais parte do preconceito.
“A gente vive numa cultura machista, misógina, opressora, então, para a mulher sempre foi negado esse autoconhecimento. Agora, em relação ao pessoal que é trabalhador ou trabalhadora da saúde, eu acho muito difícil alegar um desconhecimento por outros motivos que não seja mesmo a falta de vontade ou o próprio preconceito”.
“Estamos no século XX, onde as pesquisas científicas, os dados, as próprias academias têm, a cada dia, evoluído nos conceitos da medicina, da enfermagem. Então um trabalho específico para mulheres lésbicas tem sua realização dentro do espaço da pesquisa, mesmo que pouco. Oportunidade para ler, para conhecer, existe; o que não existe é a vontade de se fazer”
Iniciativas locais
Como ativista, Poliana Santos já participou de capacitações com o objetivo de levar conhecimento e desmistificar questões sobre a vida sexual e reprodutiva de mulheres lésbicas. Ela acredita que basta vontade para acessar essas informações.
“Eu já participei de momentos com os profissionais da saúde nos quais nós levamos as questões e as demandas. Na contemporaneidade já não é algo que possa se dar como desculpa falar: ‘Eu não entendo, não sei como é’, só por fazer parte do nicho heteronormativo. Acho que a gente tem que deixar à luz de todas, todos e todes que essa ‘falta de conhecimento’ é atrelada a uma falta de vontade à busca do conhecimento”, define.
Camila Miler está, atualmente, na presidência da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil Subseção Apucarana e espera poder contribuir para ampliar esse debate e o acesso a um atendimento de qualidade.
“Inclusive, já iniciamos tratativas junto ao pessoal da área da saúde para que a nossa comunidade seja ouvida e que ações em conjunto sejam realizadas” revela. A advogada ressalta que, além da saúde sexual, informações sobre a questão reprodutiva ainda são negligenciadas para mulheres lésbicas.
“Hoje em dia temos procedimentos que podem ser aplicados ao casal lésbico para reprodução, no entanto, a informação acerca de tal assunto é realmente précaria”.
Política Nacional completou 10 anos
Em 2011 foi instituída, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT), que reconhece, em seu texto, a invisibilização das mulheres lésbicas e bissexuais.
“Considerando a existência de dados que revelam a desigualdade de acesso aos serviços de saúde pelas lésbicas e mulheres bissexuais”, diz trecho introdutório da lei. Dentre as medidas específicas previstas para esse público estão:
– prevenir novos casos de cânceres ginecológicos (cérvico uterino e de mamas) entre lésbicas e mulheres bissexuais e ampliar o acesso ao tratamento qualificado;
– buscar no âmbito da saúde suplementar a garantia da extensão da cobertura dos planos e seguros privados de saúde ao cônjuge dependente para casais de lésbicas, gays e bissexuais.
Outras medidas importantes, voltadas ao público LGBTQIA+ como um todo, são:
– reduzir os problemas relacionados à saúde mental, drogadição, alcoolismo, depressão e suicídio entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, atuando na prevenção, promoção e recuperação da saúde;
– incluir ações educativas nas rotinas dos serviços de saúde voltadas à promoção da autoestima entre lésbicas…;
– respeito aos direitos humanos;
– inclusão da temática da orientação sexual e identidade de gênero nos processos de educação permanente desenvolvidos pelo SUS;
– articular junto às Secretarias de Saúde estaduais e municipais para a definição de estratégias que promovam a atenção e o cuidado especial com adolescentes;
– articular a definição de estratégias que ofereçam atenção à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em situação carcerária;
– promover a inclusão de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em situação de violência doméstica, sexual e social nas redes integradas do SUS;
– implantar práticas educativas na rede de serviço do SUS para melhorar a visibilidade e o respeito.
Desde 2011 não houve atualização da política. A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre o tema, mas não obteve retorno.
Estado diz buscar equidade na saúde
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) respondeu como tem tratado a questão da saúde integral da população LGBTQIA+, não se atendo ao questoionamento específico sobre mulheres lésbicas.
“Há um esforço da Sesa para dar visibilidade a essas populações específicas em situação de vulnerabilidade, na perspectiva de ampliar o olhar e assegurar o acesso para o cuidado integral em saúde.”, afirma. A secretaria tem participação em instâncias de controle social, como o Comitê LGBTI+, na perspectiva de “fomentar a equidade em saúde”.
“Nesses espaços são discutidas e encaminhadas diversas demandas, inclusive algumas relacionadas à saúde dessa população, com o foco no acesso à saúde universal, humanizada, com equidade e considerando a integralidade no atendimento.”, finaliza.
Fonte: Redação Rede Lume