São mais de 80 anos de luta por direitos e empregadores ainda se recusam a registrar as empregadas. Nem o direito a vida é respeitado, diz presidente da Fenatrad se referindo a quarentena feita só por patrões
Apesar das conquistas históricas de direitos e do reconhecimento das trabalhadoras como categoria profissional, nesta segunda-feira (27), Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica, a categoria não tem o que celebrar, especialmente nesta época de pandemia do novo coronavírus (Covid-19), quando muitas são impedidas de fazer quarentena para se proteger do vírus e se arriscam indo trabalhar.
O caminho, que não tem sido fácil para elas até agora, ainda requer muita luta e conscientização da sociedade, em especial daqueles que as contratam, para os direitos, inclusive à vida, sejam respeitados.
De acordo com as trabalhadoras, o dia-a-dia das empregadas domésticas ainda guarda a herança cultural escravocrata brasileira que as colocam em um patamar de desigualdade acentuada em relação às demais categorias no que diz respeito aos direitos como carteira-assinada, fundo de garantia, 13° salário, férias e contribuição para a previdência, além de da exploração e exposição a riscos extremos, como acontece agora com a pandemia do coronavírus.
A presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, explica que a situação dessas trabalhadoras nunca foi de igualdade. “São Mais de 80 anos de luta e os direitos foram chegando gradativamente, mas ainda hoje, há muitos empregadores que não registram as empregadas e não recolhem o INSS”.
Nem o direito à vida é respeitado, diz a dirigente, lembrado que muitos empregadores seguem as recomendações de isolamento social para conter a pandemia da Covid-19, mas não dispensam as trabalhadoras domésticas que, além de direitos, arriscam a vida.
Junéia Batista, secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, lembra que o dia da Trabalhadora Doméstica é uma data para relembrar o trabalho doméstico no Brasil e as conquistas como a PEC das Domésticas, aprovada em abril de 2013, e a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que recomenda aos países signatários a garantia de trabalho decente para as trabalhadoras domésticas, com os mesmos direitos que os demais trabalhadores, como jornada de trabalho definida, salário mínimo, férias e direito à sindicalização.
“Nós conquistamos uma lei que garantia o cumprimento da Consolidação das Leis do Trabalho, uma lei que garantia proteção social às trabalhadoras domésticas. Também conquistamos a ratificação da Convenção 189 da OIT, mas em 2020, o que a gente vê é um total desrespeito à categoria”.
Conquistas histórica da categoria, a Proposta de Emenda à Constituição 66/2012, que ficou conhecida como PEC das Domésticas, estabelecia direitos iguais às demais categorias. Elas conquistaram o direito à jornada de trabalho 8h diárias, horas-extras além dos demais direitos. A PEC virou Emenda Constitucional 72. Ainda no governo de Dilma Rousseff, em 2015, foi aprovada a Lei Complementar 150, que regulamenta direitos da cateforia.
Cinco anos depois, o número de trabalhadoras com registro em carteira não chega 30%. Dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no estudo “Trabalho doméstico, os direitos garantidos e a regulamentação no Congresso Nacional” mostram que em 2018, do total de 6,2 milhões de pessoas, entre homens e mulheres empregadas no serviço doméstico, apenas 28,6% exerciam a atividade com registro em carteira.
Do total de profissionais da categoria, 5,7 milhões são mulheres e cerca de 3,9 milhões são mulheres negras.
A Lei 150/2015 estabelece que é obrigação do empregador assinar a carteira de trabalho sempre que haja prestação de serviços de forma contínua, o que garantiu às mensalistas o direito de serem registradas, mas não garantiu o mesmo direito às diaristas.
A aí é que a categoria sofreu um revés. De acordo com Cleide Pereira Pinto, Secretária de formação Sindical da Fenatrad e presidente do Sindicato de Trabalhadores domésticas de Nova Iguaçu (RJ), depois da PEC, muitos patrões, para se livrarem de encargos trabalhistas, decidiram contratar as trabalhadoras como diaristas. A elas, só resta a alternativa de contribuírem, por conta-própria, para a Previdência, como autônomas (11% do salário mínimo, ou seja, R$ 124,00) ou como microempreendedoras individuais (MEI), com a alíquota de R$ 54,90 por mês.
“Com isso, a PEC acabou ficando só no papel e depois que esse governo entrou, o regime escravocrata aumentou, porque a crise aumentou e a gente não consegue trabalho registrado. Não tem mais respeito”, afirma Cleide se referindo ao governo de Jair Bolsonaro.
As diaristas são uma das categorias mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus. De acordo com pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva, 39% dos patrões que dispensaram diaristas durante a quarentena não pagam a diária e o Auxílio Emergencial de R$ 600 ainda é um soinho distante para a maioria delas.
Crise
Com a reforma Trabalhista do governo do ilegítimo Michel Temer (MDB), que conforme lembra a presidenta da Fenatrad, “ia gerar monte de emprego, mas não gerou nenhum”, e com a falta de um plano econômico do governo de Jair Bolsonaro para promover desenvolvimento com geração de emprego e renda, as empregadas domésticas sofrem ainda mais.
Cleide Pereira conta que recebe todos os dias em seu sindicato, trabalhadoras desesperadas com a situação financeira. “As diaristas não têm trabalho e estão no sufoco. Agora, com a pandemia do coronavírus, elas praticamente estão passando fome, não têm dinheiro para o aluguel, foram morar de favor na casa de parente”, ela diz, complementando que a maioria delas é mãe solteira e sustenta a casa e os filhos, sozinha.
Junéia Batista afirma também que o momento atual, de crise por causa da pandemia do coronavírus, fez com que muitas trabalhadoras perdessem o emprego. “Muitas com carteira assinada foram demitidas e diaristas não estão conseguindo trabalho e estão recorrendo à solidariedade das colegas para poderem sobreviver porque poucos empregadores, como mostrou a pesquisa, continuaram pagando as diárias”, ela diz.
Outro drama vivido pelas empregadas domésticas é o descumprimento das obrigações trabalhistas por parte dos patrões, já que não há uma forma efetiva de fiscalização no local de trabalho, geralmente um ambiente privado e doméstico. “O sindicato só pode ir até o local para confirmar a denúncia e encaminhar para uma delegacia. O auditor fiscal do trabalho também não pode ir ao local, só pode mandar notificação, então com tudo isso, fica difícil ter o direito respeitado”, explica Luiza Batista, presidenta da Fenatrad.
Ela relata casos de trabalhadoras com 20 e até 30 anos de serviço na mesma casa, que procuram os sindicatos denunciando os patrões por não terem recolhido os encargos. “Elas trabalharam muito tempo e quando vai ver, o patrão recolheu só um ano ou dois de INSS”, afirma a dirigente.
Ela critica a falta de uma legislação que puna efetivamente o empregador nesses casos e proteja as trabalhadoras. “Não existe multa pesada para o patrão. Os juízes dizem que não são fiscais da previdência e a previdência, que não cobra os empregadores, nega o benefício na hora da aposentadoria”.
A corda sempre arrebenta do lado mais fraco”, ela conclui.
Desrespeito ao ser humano
É muito comum a frase “ela é como se fosse da família”, dita por patrões (e patroas) sobre a relação de trabalho dentro da casa. Mas para Cleide Pereira, essa forma de tratamento abre caminho para a exploração e o desrespeito aos direitos das trabalhadoras.
“Quando um patrão fala para a trabalhadora que ela é da família, é assédio moral. A maioria tem pouca escolaridade e tem uma vida muito sofrida. Elas são carentes e, querendo ou não, estão dentro de uma casa, de uma outra família e é fácil se apegar”, diz a sindicalista.
Ela conta que trabalha há 35 anos em uma mesma casa e que ao longo dos anos, aprendeu ‘a separar as coisas’. “Tenho amizade, claro, com a família, mas ali é meu trabalho. A maioria, principalmente babás acabam se apegando aos patrões, que se aproveitam disso para explorar o trabalho. Se quer mesmo que seja da família, coloca pra dormir no quarto de hóspedes, coloca no testamento”, afirma.
De acordo com Cleide, por esse tipo de relacionamento com os patrões, as trabalhadoras acabam tendo medo de procurar a justiça. “Elas dizem ‘meu patrão é bonzinho’, mas se fosse mesmo, teria pago os direitos”, afirmando dizendo que a categoria não quer esse tipo ‘reconhecimento’.
Reconhecimento de verdade é respeitar os direitos dar valor ao trabalho. Não queremos ser da família de ninguém, temos nossa família. Queremos reconhecimento do nosso trabalho do nosso valor, dos nossos direitos, respeito como pessoa.
Luiza Batista também cobra respeito da sociedade às trabalhadoras domésticas. “Buscamos uma reparação histórica porque o trabalho doméstico é uma herança direta da escravidão”, ela diz.
A presidente da Fenatrad lembra que todas outras categorias não existiam na época da escravidão. “Eram só os escravos que serviam aos senhores enquanto seus filhos iam estudar na Europa e para que a ‘casa grande’ tivesse uma vida de conforto explorando esses escravos”.
Luiza reforça que a trabalhadora doméstica quer ser tratada e respeitada como profissional, como categoria da classe trabalhadora. De acordo com ela, ao contrário do que se pensa, o trabalho de uma empregada doméstica gera lucro indireto para a sociedade.
“É por meio do nosso trabalho que as mulheres, principalmente, se inserem no mercado de trabalho, em outras profissões. Nosso trabalho proporciona tempo para que todos estejam inseridos”, ela completa.
Políticas públicas
Luiza Batista ainda afirma que a maioria das trabalhadoras domésticas mora nas periferias das cidades e que, por isso, têm acesso mais difícil a políticas públicas como creche para seus filhos e atendimentos em postos de saúde.
“A gente precisa de escolas integrais para os nossos filhos, de creches e de mais investimentos em saúde, para que a gente vá até um posto e tenha vaga para ser atendida. Isso é política pública que beneficia diretamente a nossa categoria”, ela diz.
Pandemia
Muitas trabalhadoras domésticas estão sofrendo consequências diferentes por causa da pandemia do coronavírus. Aquelas que perderam o emprego ou passam por dificuldades por não poder trabalhar como diaristas, têm de esperar a boa vontade do Governo Federal para liberar o auxílio emergencial de R$ 600,00. A categoria registra também suspensão de contratos de trabalho e ainda, trabalhadoras que tiveram de continuar trabalhando, com risco de exposição ao vírus e sem nenhuma forma de proteção.
Foi o caso da primeira morte por Covid-19 no Rio de Janeiro. Uma trabalhadora de 63 anos que era empregada em uma residência de uma patroa infectada com o vírus, no bairro Leblon. De acordo com Cleide Pereira, muitos são os casos de trabalhadoras que são obrigadas a continuar trabalhando, correndo os riscos.
A Fenatrad lançou uma campanha para exigir providências as autoridades para que a categoria possa ter maior proteção.
Uma das reivindicações é que os empregadores liberem suas trabalhadoras domésticas, com salário, e se possível, com antecipação de férias e 13° salário. Além disso, no caso de ser imprescindível a presença da trabalhadora no local de trabalho, que sejam respeitadas e reforças as regras de segurança como o fornecimento de luvas, máscaras, álcool-gel e pagamento de transportes alternativos para evitar os transportes públicos.
A campanha conta um abaixo-assinado para pressionar órgãos como o Ministério da Economia, a Previdência Social e o Congresso Nacional para que adotem medidas de proteção à categoria.
Dados
Segundo dados Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad-Continua), do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no trimestre móvel encerrado em dezembro de 2019, o Brasil tinha 6,356 milhões de trabalhadores domésticos. Desse total, 4,598 milhões eram informais, ou seja, sem carteira assinada.
Em relação ao mesmo período de 2018, houve queda de 3% no número de pessoas com carteira assinada, passando de 1,819 milhão para 1,764 milhão.
O salário médio no último trimestre de 2019 foi de R$ 897,00.