Para historiadora, a formação da sociedade brasileira está assentada em repressões contra saberes de povos indígenas e africanos
Dados do Disque 100, serviço para denunciar violação de direitos vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, indicam que de janeiro a junho de 2022, o Brasil registrou 545 denúncias de intolerância religiosa. No mesmo período de 2021, foram 466 queixas, ou seja, houve um aumento de 17% em 2022. O estado com mais ocorrências é São Paulo (111 casos), seguido do Rio de Janeiro (97), Minas Gerais (51), Bahia (39), Rio Grande do Sul (26), Pernambuco (13) e Ceará (11).
As religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, são as que mais sofrem preconceito. Em Londrina, Vilma Santos de Oliveira, mais conhecida como Dona Vilma ou Yá Mukumby, mulher negra, liderança do movimento negro e do candomblé, foi assassinada em 2013 juntamente com sua mãe e uma neta. O crime foi cometido por um vizinho e motivado por intolerância religiosa.
Quase uma década depois, em outubro deste ano, um terreiro na área de central da cidade foi alvo de ataques. Um coquetel molotov [espécie de bomba caseira feita com algum combustível como gasolina ou álcool] foi arremessado. “O vento impediu que pegasse fogo. Se estivesse calor sem vento, teria incendiado tudo”, relata Mãe Cláudia, uma das responsáveis pela casa em entrevista à Rede Lume. Um boletim de ocorrência foi realizado contra um vizinho que já tem histórico de ofensas.
Para uma frequentadora de um terreiro em Londrina que prefere não se identificar por medo de represálias, as violências são múltiplas. “Já passei por situações em que não pararam no ponto de ônibus e me xingaram de ‘macumbeira’, ‘demônio’. Trabalho em uma empresa privada e quando vou com minhas guias, roupas brancas, percebo os olhares que mesclam medo e julgamentos”, afirma.
Levantamento realizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) demonstra que 78,4% de pais e mães de santo já sofreram violência no país em decorrência de intolerância religiosa. Ainda, 91,7% já presenciam alguma situação ou ouviram algum preconceito devido a adesão religiosa. A pesquisa entrevistou 255 lideranças de terreiros localizados em diversas regiões. Questionados sobre as denúncias, 45,5% afirmaram não sentir acolhimento por meio de canais como delegacias.
Gisele Alencar, historiadora, pontua que a opressão contra as religiões africanas perpassa diferentes momentos da história da sociedade brasileira. A Constituição Federal em vigor, considera “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
“Já no período colonial, as manifestações religiosas de povos escravizados como africanos e indígenas sofreram repressão e foram estigmatizadas, frequentemente, associadas a práticas de magia e charlatanismo. No imaginário social, isso levou a uma visão exotizada e deturpada destes coletivos. Para sobreviver, estes rituais, saberes religiosos tiveram que se adaptar ao universo cristão, sobretudo, católico. Um dos exemplos mais evidentes é o sincretismo religioso entre santos e orixás. Mas é sempre importante não romantizar este processo, pois ele foi caracterizado por extrema violência”, avalia.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.