Famílias solicitaram crédito para ampliação de produção e o estabelecimento de um projeto em prol da reforma agrária que abranja todo o país
No próximo dia 30 de outubro, o assassinato de Dorcelina Folador completa 24 anos. Nascida em Guaporema, no Paraná, a professora, poeta, artista plástica mudou-se para o Mato do Grosso do Sul, chegando a ser prefeita, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), do município de Mundo Novo. Neste mesmo local, foi morta com seis tiros pelas costas na varanda de sua casa.
Segundo investigações à época, o assassinato de Dorcelina foi encomendado pelo Secretário da Fazenda de Mundo Novo, Jusmar Martins da Silva. Ele foi acusado de contratar o pistoleiro, Getúlio Machado, que confessou e disse que receberia R$ 35 mil pelo crime.
Além da participação na política institucional, Dorcelina também se engajou na luta pela terra, integrando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). No coletivo, atuou como repórter no Jornal Sem Terra (JST), veículo pautado pela comunicação popular, cuja uma das principais funções era denunciar as violências no campo.
Também símbolo de luta contra o capacitismo, visto uma deficiência na perna esquerda, Dorcelina dá nome a diversas escolas, acampamentos e assentamentos distribuídos por todo o país, a exemplo do fundado em Arapongas, região metropolitana de Londrina.
O espaço, fruto da reforma agrária e responsável por abrigar 96 famílias atualmente, sediou nesta segunda-feira (9), “Ato político da Reforma Agrária Popular para desenvolvimento das Cadeias Produtivas e Soberania Alimentar”. O evento foi organizado por membros do MST e da Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (COPRAN).
Além de lideranças populares, o encontro contou com a participação de Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Também integraram a comitiva, Cesar Aldrighi, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Edegar Pretto, presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Juliana Santos da Cruz, superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), diretores do Banco do Brasil, entre outras autoridades como deputados federais, estaduais (Professor Lemos, Arilson Chiorato e Goura – representado por seu assessor Eduardo Simões Florio de Oliveira), prefeitos e vereadores da região.
Para Sandra Ferrer, a Flor, coordenadora política do MST Paraná, a vinda de representantes do governo federal é um aceno importante para a consolidação de um projeto da reforma agrária, especialmente, no Paraná, estado cujo governador Ratinho Júnior (PSD) tem privilegiado o agronegócio em detrimento à agricultura familiar.
“Para nós o que importa é que os ministros estejam a campo, participando ativamente. É só estando aqui no nosso território para conhecer e, assim, poder trazer políticas públicas que possam nos favorecer enquanto pequenos agricultores, principalmente, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ele [Paulo Teixeira] mesmo demonstrou o interesse em aprender mais com a gente”, compartilha.
Segundo ela, as principais demandas das famílias assentadas são mais investimentos para que possam ampliar a produção na terra e garantir assistência técnica. “Não estamos pedindo esmola, apenas o que é de direito, recurso para gente poder avançar na produção de comida sem veneno, para gente poder trabalhar a agroecologia, é isso que queremos. A necessidade maior é produzir e para isso precisamos de recurso. A terra está lá para gente produzir, mas sem recurso como produzimos?”, observa.
De manhã, as lideranças visitaram uma unidade de produção familiar do assentamento e a sede da agroindústria de leite e derivados da COPRAN, também localizada no terreno. Na sequência, participaram de assembleia com a presença de famílias assentadas e acampadas. Para o encerramento das atividades, os moradores promoveram almoço coletivo.
“A prova de que a reforma agrária dá certo”
Para Roberto Baggio, integrante da direção nacional do MST, a experiência do assentamento Dorcelina Folador é a prova de que a reforma agrária é possível. Ele também destaca a diversidade dos alimentos produzidos no assentamento que vão desde frutas a laticínios.
“Aqui, todos moram em uma bonita casa, bem grande, com energia, água, móveis. Ao redor, um espaço cuidado, com pomar, árvores, e as famílias organizaram o lote para produzir renda. Tem uma variedade de produção, tem um conjunto que optaram para ter renda a partir da horta, onde produz 15, 18 tipos de verduras. Tem um conjunto de famílias que tem as frutíferas e tem outras que estão na área do leite, da soja, do feijão, ou seja, tem uma estruturação produtiva que gera trabalho, progresso”, avalia.
A liderança acrescenta a importância do senso de coletividade que perpassa desde a convivência cotidiana às formas de organização de trabalho na Cooperativa, onde os assentados são os responsáveis por todos os passos da produção à comercialização.
“Tem todo um espaço comunitário, onde as famílias marcam a sua identidade, através das festas, encontros inter-religiosos, atividades culturais, visitas políticas. E como grande indutor do desenvolvimento, organizaram uma Cooperativa de produção, onde os assentados são proprietários e sócios deste empreendimento, não tem capitalista, é uma experiência associativa”, diz.
Para o ministro Wellington Dias, as atividades desenvolvidas no assentamento demonstram que o cooperativismo e a reforma agrária funcionam a partir do fortalecimento de políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
“Aprendemos a importância de programas, a gente pode aperfeiçoar com foi pedido aqui, aquisição de alimentos, compra direta, o PRONAF, também esta mudança que eles fizeram intergeracional, ou seja, uma geração que esteve no primeiro momento do assentamento e agora uma nova geração que chega com bem mais formação técnica e isso ajuda a modernizar os sistemas. Queremos levar estes casos de cooperativas de sucesso também para outras regiões do Brasil”, relata.
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em julho último, identificou que a fome voltou a crescer no mundo. No Brasil, 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança alimentar.
Baggio salienta que, além de garantir a sobrevivência das famílias, a reforma agrária contribui para o crescimento econômico do país através da geração de emprego e renda ao mesmo tempo em que coopera para o combate à fome.
“Contribui para a sociedade, produzindo comida que abastece a cidade e gera riqueza, trabalho, imposto para fomentar o desenvolvimento. Uma experiência positiva que a gente espera que se multiplique pelo Brasil inteiro para resolver o problema da fome e do trabalho. Esse vigor do alimento, do leite, da carne, mandioca, verdura, fruta que alimenta a resistência para reconstruir o Brasil. Não temos nenhuma dúvida, que para erradicar a fome, precisamos repartir a terra, assim, as famílias vão encher as mesas da sociedade brasileira”, assinala.
De acordo com ele, atualmente, no Paraná, são 320 assentamentos com 22 mil famílias produzindo alimentos para venda, autossustento e doação. Ainda, existem 23 cooperativas similares a COPRAN. Cada unidade é baseada na vocação agrícola da região, rompendo com o sistema de monocultura, destinado, majoritariamente, para a exportação.
“Hoje, as nossas cooperativas produzem leite e derivados, cana de açúcar e derivados, erva mate e derivados, arroz, feijão, hortifruti granjeiro, grãos. Nós temos uma potencialidade produtiva esparramada no Paraná inteiro. E assim é no Brasil todo. A reforma agrária é solidariedade, compromisso, cuidado, alimento, desenvolvimento humano, é cuidar da gente”, indica.
Ainda, para o coordenador, a principal tarefa de produzir comida de verdade é indissociável do cuidado com o meio ambiente, garantindo a valorização da biodiversidade e respeito à terra. “Temos que proteger o que temos de água, mata e por isso que nosso alimento é da transição agroecológica, não queremos veneno. Tem toda essa política da agroecologia ser essa grande matriz produtiva que gera o desenvolvimento e produz alimento, comida para matar a fome do povo brasileiro”.
Agroindústria: trabalho para a juventude camponesa
Em 2013, com a presença da então presidenta, Dilma Rousseff (PT), foi inaugurada a agroindústria de laticínios da Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa. A produção da agroindústria do leite e do hortifrutti atende o mercado varejista da região e o mercado institucional através dos programas de alimentação escolar estadual e municipal das escolas da região e de Curitiba. Uma pequena padaria, também presente no assentamento, atende especificamente o programa da merenda escolar de Arapongas.
“O salto da Cooperativa é ter identificado a agroindústria como um componente de agregar valor ao que se produz. Tudo que se produz de matéria prima aqui é agro industrializado ou na indústria do leite ou de hortaliças e frutíferas. Toda essa comida chega na mesa da cidade para a população ou para as crianças das escolas que se alimentam com uma comida saudável, sem veneno, rica em vitaminas”, salienta Baggio.
“O presidente Lula pediu que a gente pudesse vir a lugares do Brasil, como é o caso do Paraná, onde temos cooperativismo de sucesso, que consegue trabalhar com muita eficiência, com elevada produtividade, regularidade para ter produção de alimentos o ano inteiro. Pequenos produtores como vimos aqui, terras de até 10 hectares, e ainda com a capacidade de agregar valor. O beneficiamento do leite, por exemplo, vimos 13 produtos como queijo, iogurte. Destaco também a capacidade de colocar no mercado, não só na venda, também para a alimentação escolar saudável e outras compras públicas”, declara Wellington Dias.
Hoje, a agroindústria produz cerca de 40 mil litros de leite por dia e atende mais de 420 produtores situados em aproximadamente 20 municípios no estado. Também é responsável pela geração de mais de 100 postos de trabalho, preenchidos especialmente por jovens e mulheres do próprio assentamento.
Reconstruir o Brasil
O ministro Paulo Teixeira, classificou o trabalho coletivo realizado no assentamento como “um exemplo bem sucedido da reforma agrária”. O responsável pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, pasta extinta em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), listou uma série de medidas que tem sido tomadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para retomada das atividades no setor, entre elas, o aumento das verbas para Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ao todo, neste ano, foram injetados R$ 500 milhões e R$ 1,5 milhão a mais nas respectivas políticas.
Entre as novidades, o dirigente da pasta indicou uma força-tarefa para ampliar a aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar, por meio de compras públicas. A iniciativa envolve a CONAB e os ministérios do Desenvolvimento Agrário, Saúde, Educação, Defesa, Desenvolvimento e Assistência Social. Através da medida, Forças Armadas, hospitais, institutos e universidades federais terão que comprar 30% dos alimentos da agricultura familiar.
“Pobre não tem amigo que possa ser avalista e por isso temos que desburocratizar, para chegar o dinheiro. Mexer no manual de crédito agrícola e nos bancos porque o sujeito que planta alface, ele tem que fazer um projeto para a alface, um para o cebolinha, outro para o repolho, temos que mudar isso para fazer um projeto só para sua produção orgânica”, complementa.
De acordo com ele, a diminuição da desigualdade social, enfrentamento da crise climática e fortalecimento da democracia são os pilares que têm norteado o plano de trabalho do MDA. “No Brasil, sempre que o debaixo começar a subir o de cima vem tira a escada, temos que mudar isso”, adverte o ministro.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.