‘A vida imita a arte’ é parte (integrante) de uma frase secular de Oscar Wilde (dos grandes escritores vitorianos) da qual me valho sempre que vejo mais arte do que costuma espelhar a vida.
É a sensação que aflora ao assistir a película cinematográfica de Walter Salles (Ainda Estou Aqui) baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, onde está contada a história de seu pai (o então Deputado Federal Rubens Paiva – Presente!) e, principalmente, de sua mãe Eunice que, em 1971 (ano do sequestro seguido de tortura e morte do Deputado) ‘herdou’ da ditadura militar, além da viuvez precoce, a reponsabilidade de criar a família sozinha.
O filme é programa obrigatório para cinéfilos e não cinéfilos, leitores, amantes das artes, bailarinas e bailarinos, loucos e loucas, mansos, furiosos e furiosas, cachaceiros e cachaceiras, estrelas e asteroides, bem assim todo seguimento progressista que há na face da terra.
Advirto, todavia: adoradores de berrante e mitos de pés de barro não compõe público inteligente o bastante para ver, em manifestação artística, uma qualquer mimetização da vida – na medida em que desconhecendo Oscar Wilde, tanto quanto, não se vislumbra hipótese de inteligência empática pela vida…
Essa ‘obrigação cultural’, deveras, está potencializada no prêmio valoroso (Globo de Ouro) que o mundo do cinema conferiu à Fernanda (Fabulosa) Torres que, no papel de Eunice Paiva, já é a imagem denunciante das crueldades criminosas que a ditadura militar espraiou por américa latina.
Não paremos por aqui, todavia, ainda que os parágrafos acima convolem argumentos mais que suficiente à recomendação do filme…
Nessa quadra da vida, todavia, onde se ensaia (mundo afora) flerte maligno com a extrema-direita, onde as instituições democráticas vêm sendo reiteradamente atacadas e questionadas (pelo grande capital), a história está sendo ‘estoriada’ por uma tantada de sicofanta que desconhece a própria (mas ama a botina e obedece ao berrante), o filme se impõe como freio e contrapeso ao totalitarismo covarde que os ignaros da humanidade estão brincando de revisitar.
Essa conjuntura medíocre explica, em parte, a importância da fake news enquanto movimento catalisador da rês de manobra que acampa em frente à próprio do exército à espreita de comando para invadir (em um 08 de janeiro qualquer) as dependências dos poderes constituídos, atentando contra a ordem democrática.
Para o gado totalitário que não respeita minorias, deveras, o escrutínio da mentira leva ao negacionismo terraplanista, ao tempo em que mitiga pautas (seculares) progressistas, na negação mentirosa da história – o fato histórico não está, senão, um estorvo ao desiderato da extrema-direita.
Neste instante medíocre de nossas vidas é impagável ver uma mulher vencer o Globo de Ouro. Imagino o ódio reacionário (com o perdão do pleonasmo) dos misóginos de sempre ao verem Fernanda (Fabulosa) Torres reconhecida, aclamada, premiada e maravilhosamente consagrada porta voz da empatia – sem falar em sua felicidade pelo reconhecimento da arte.
Tão sensacional quanto é colher, da atuação de Fernanda, o necessário contraponto à imbecilização crescente do gado apegado à ditadura, com noção abaixo de zero de história, ciência e humanidade, notadamente quando, por aqui, se ensaia hipótese de anistia para os criminosos de 08 de janeiro.
Eis o ponto que buscávamos, na medida em que a obra de Walter Salles confere visibilidade maior ao talento literário de Marcelo Rubens Paiva, ofertando severo obstáculo (cidadão) aos adoradores de milico e à sua sempre bem (disposta) subserviência para com os criminosos da ditadura e hipóteses assemelhadas – 08 de janeiro…
Eu sei. Desacorçoa ofertar pérolas à porcos. Todavia, seguir contrapondo o berrante da máxima ferocidade não acalenta apenas os ideais, naquilo que abraça a própria alma – que até descobrir minha necessidade fervorosa de enfrentamento fascista, sequer sabia que era possuidor de uma…
Há muita literatura sobre o tema e abrir as veias de américa latina passa (também) por escancarar as intentonas golpistas reacionárias que o grande capital, pela covardia maligna de tio san, espraiou pelo continente.
Nesse entorno não posso deslembrar da cusparada que o mito dos bovino-boys desferiu na estátua então inaugurada de Rubens Paiva, na presença de seus familiares, em pleno Congresso Nacional. O que dizer, então, de sua fala imortal e limítrofe – ‘quem procura osso é cachorro’?
Há muito a se reconstruir por aqui, mas a américa (do sul, mexicana e central) segue sendo o lugar onde os sonhos aguardam o homem na empreita do resgate da empatia.
Não por acaso, quando o mundo berra o esgotamento da extração desenfreada de suas riquezas e o amesquinhamento de suas potestades (fluviais, aéreas e terrestres), murchando (de monsanto em monsanto) a cadeia da vida, a lembrança do calvário desumano a que ‘homens de bem’ e fardados submeteram Eunice Paiva e seus filhos, dá a medida do que significa uma ditadura.
Sei, é bem verdade, que o som do berrante subsome a luz da história, para muita gente que prefere consumir a pensar, julgar a conhecer, odiar a amar, abjurar a phoder. Mas sei, também que a história conduz a nau de nossa circunstância e o mar segue sendo o lugar onde as lendas se espiam pela teia da existência.
Existir, afinal, a que será que se destina? Rubens e Enice Paiva presentes!
Tristes trópicos.
Saudade Pai.
João Locco para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.