Para o congolês, o fundamental hoje são políticas para “a inclusão dos negros em todos setores da vida nacional”
“Todo mundo hoje está convencido – brancos e negros – que a democracia racial não existe no Brasil”. O mito de que o país do carnaval e do futebol vive em harmonia entre as diferentes cores de pele e as classes sociais – fantasia essa que por décadas o movimento negro e intelectuais demonstraram ser uma falácia –, já está superado. Essa é a avaliação do antropólogo e professor aposentado da USP, Kabengele Munanga. Para ele, o desafio hoje é outro.
“A questão fundamental que se coloca agora são as políticas de inclusão: a luta para incluir os negros em todos os setores da vida nacional”, defende Munanga, um dos maiores pensadores das relações raciais do país, autor de obras como Rediscutindo a mestiçagem no Brasil e Origens africanas do Brasil contemporâneo.
Ao Brasil de Fato, Kabengele afirma que a consciência racial está crescendo – “antigamente não se falava tanto do racismo”. Mas pondera que o caminho, em uma sociedade em que a população negra está subrepresentada em todos os espaços de poder, é longo.
“O racismo”, diz, “é um monstro de grande complexidade”: se sustenta em estruturas não visíveis. Por isso, argumenta, “não basta dizer ‘abaixo o racismo’, precisamos de políticas concretas”. Leis, educação inclusiva e políticas afirmativas são três caminhos que Munanga, que recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em novembro, considera fundamentais.
Há também um tanto de inventividade que será necessária para repensar o modelo de democracia em vigor no país. Para o professor, se por um lado este modelo precisa ser defendido, porque “é o que temos”, por outro, ele está “em crise” e precisa evoluir.
Aos 82 anos, Kabengele trabalha atualmente na sua autobiografia. Nascido na pequena cidade congolesa de Bakwa-Kalonji, fez seus estudos acadêmicos entre a África e a Europa e veio ao Brasil em 1975, com uma bolsa para concluir o doutorado na USP. Dez anos depois, se naturalizaria.
A experiência de ser o primeiro pós-graduando negro do departamento de Antropologia e, mais tarde, o primeiro docente negro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, marcou o que Munanga entende como seu “processo de conscientização” e engajamento pelos direitos da população negra brasileira.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Você está escrevendo sua autobiografia, certo? O que te fez tomar essa decisão?
Kabengele Munanga: Eu não pensava em escrever minhas memórias. Mas as pessoas que me conhecem e escutam minhas histórias acharam que era importante, porque eu tenho uma história de vida pouco comum. Muitas pessoas insistiram e eu achei necessário escrever minhas memórias. Não para mim. Porque estou com 82 anos, não sei quantos anos de vida ainda terei, mas pode servir para os meus netos, netas, bisnetos, bisnetas, tataranetos.
Tem umas pessoas que querem até fazer uma biografia, com base em entrevistas. Mas eu decidi eu mesmo escrever, porque tem coisas que só eu posso dizer e pensar.
Nascido no Congo, você chega no Brasil em plena ditadura militar. Ao longo dessas décadas, a sua trajetória se mistura com a das lutas antirracistas do país. Você acompanhou a fundação do Movimento Negro Unificado, se tornou o primeiro docente negro da FFLCH, na USP, lutou pela implementação das cotas raciais nas universidades, só para citar algumas coisas. Pode contar alguma das coisas que você revisita na autobiografia, que tenha te marcado de forma especial?
Uma coisa que marcou a minha vida – e você não percebe isso no primeiro dia, faz parte de um processo de conscientização – foi quando eu me dei conta que era o primeiro negro a fazer doutorado no departamento de Antropologia da USP. Desde que a USP existe, não havia outro negro que tinha passado pelo departamento de Antropologia, nas Ciências Sociais.
Fui o primeiro negro a ser professor na Universidade de São Paulo. A maior universidade pública do Brasil, num país com tantos negros, eu fugindo da ditadura militar para sobreviver, me torno o primeiro docente negro da USP. Isso marca qualquer pessoa.
Sempre me perguntei: será que com tantos negros no país, não houve um negro inteligente como eu, ou mais inteligente que eu, para ser o primeiro negro docente da USP? Esse fato me marcou muito e faz parte do meu processo de engajamento nas questões que dizem respeito à inclusão da população negra na sociedade brasileira.
Durante muito tempo, o movimento negro e intelectuais como você, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro entre tantos outros, se dedicaram a explicitar a falácia da democracia racial brasileira. Tenho visto algumas análises de que hoje essa não é mais a questão. Não porque as desigualdades estejam sendo debatidas e combatidas, mas porque, muitas vezes, estão sendo explicitamente defendidas. Me vem à cabeça a cena recente da manifestação bolsonarista em Santa Catarina com um público branco fazendo a saudação nazista. Você acha que faz sentido? Como você vê o atual momento do racismo brasileiro?
O mito da democracia racial atravessa as fronteiras brasileiras. Nos países africanos, o que aparecia do Brasil? Rei Pelé, carnaval, futebol, negros e brancos juntos e misturados. A gente não tinha ideia que o Brasil era um país racista. Eu descobri quando cheguei aqui.
Descobri como? Na própria Universidade de São Paulo, onde cheguei para fazer o doutorado. Meus orientadores eram pessoas que trabalhavam sobre a questão do negro no Brasil. Que denunciavam, diziam que a democracia racial não existia, era um mito. Você encontra isso na obra de grandes mestres como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, meu orientador, João Baptista Jorge Pereira, Oracy Nogueira e tantos outros.
Naquela época muitos intelectuais queriam mostrar que há racismo no Brasil. Mas isso já foi superado. Todo mundo hoje está convencido – brancos e negros – que a democracia racial não existe no Brasil.
Quando houve a Conferência de Durban na África do Sul em 2001, a delegação oficial brasileira, do Ministério de Justiça, do departamento de Direitos Humanos, saiu de lá convencida de que precisava implementar políticas de ações afirmativas no Brasil.
Então o Brasil oficial confessou que não havia democracia racial no Brasil. O mito, hoje, está destruído. Não adianta continuar a falar de mito da democracia racial. O problema agora é transformar a situação dos negros na população brasileira. Incluir. Para isso tem caminhos clássicos conhecidos.
Quais?
Tem as leis. Tem a educação, que é como o cordão umbilical. Tudo está ligado à educação. E os negros não ingressam na educação superior, que eu chamo de instrumental, onde se formam profissionais. As estatísticas mostram isso.
O outro lado, eu chamo de educação do cidadão. Onde se forma o cidadão para ele aprender que somos diversos, que a diversidade é nossa riqueza coletiva. Isso também virou lei, como a Lei 10.639/03, que prevê a inclusão da história dos negros e dos povos indígenas e as suas culturas na formação cidadã, no ensino fundamental. E as políticas afirmativas.
Então são esses três caminhos: leis, educação inclusiva e políticas afirmativas. Essa inclusão não se faz com palavras.
Os negros são ainda subrepresentados em todos os setores da vida nacional. Olha, por exemplo, o estado da Bahia: 76% da população baiana é de pretos e pardos. Mas onde estão? Se você for para a Universidade Federal da Bahia, não vai encontrar. Graças às cotas, estão chegando agora a 35%. Se você vai na Assembleia Legislativa da Bahia, você encontra quantos negros? Quem dirige o Estado? São brancos.
Em São Paulo, entra hoje na praça de alimentação do Shopping Paulista. Quantos negros você vai encontrar lá comendo? Raramente você vai encontrar um. Porque quando eu entro, eu sou o único.
As estatísticas do IPEA mostram que a cada três jovens mortos pela violência policial nas periferias, dois deles são negros. Se você pegar a situação do sistema carcerário brasileiro, a maioria da população presa é de jovens negros.
Os negros ainda não estão incluídos. A questão fundamental que se coloca agora são as políticas de inclusão: a luta para incluir os negros em todos os setores da vida nacional.
Por isso se fala muito do racismo estrutural. Porque esse racismo está na estrutura da sociedade brasileira. Essa estrutura é uma coisa que você não vê, não é visível. O que você vê são comportamentos que você pode observar. A estrutura são as relações de dominação, de poder. Representadas pelas instituições.
Nessas instituições, se você entrar no Congresso Nacional, quantos negros têm? Judiciário, quantos têm? Quando tem um, é o último, como Joaquim Barbosa, foi o primeiro, não tem outros.
Mas essa luta não é a luta do negro. É a luta da sociedade brasileira. O machismo, o sexismo, a homofobia, são problemas da sociedade brasileira. Não é um problema das vítimas. Mas o que eu percebo hoje é que a consciência está crescendo. Antigamente não se falava tanto do racismo no Brasil como hoje.
Muito tem se falado da defesa da democracia nesse contexto do Bolsonaro e do bolsonarismo. Ao mesmo tempo, ao longo dessa mesma democracia instituída desde 1985 a gente vê a produção disso tudo que você descreveu: o encarceramento, os massacres, a subrepresentação negra nos espaços de poder, etc. O que você entende por democracia?
Essa democracia representativa que nós defendemos hoje foi inventada pelos gregos, no século 5 antes da era cristã: esse modelo onde os cidadãos votam nas pessoas que vão lhes representar nos sistemas de poder.
Mas o modelo teve que evoluir. Porque quando os gregos inventaram esse modelo, as mulheres não tinham o direito nem de serem eleitas, nem de serem eleitoras. Os escravizados também não tinham direitos. Então essa democracia teve que evoluir, levou séculos para as mulheres terem os mesmos direitos políticos que os homens.
Mesmo assim, você vê a sociedade brasileira: a maioria da população é feminina. Onde estão as mulheres neste modelo de sociedade em termos de representação? Porque uma verdadeira democracia tem que representar a diversidade.
Então este modelo de democracia, apesar de pessoas acharem que é o último, eu considero como um modelo em crise. Tem que talvez inventar outro modelo, não sei como que vai ser.
Bolsonaro foi eleito no sistema democrático. Em nome dos votos, ele se permitiu fazer tudo o que fez. Destruindo conquistas que as chamadas minorias – que na verdade são maiorias – conquistaram nos regimes anteriores. E se manteve até o fim, em nome dessa democracia, porque recebeu o voto popular.
Voto que pode ser resultado de manipulações, de mentiras – que chamam agora de fakenews e que são, na realidade, mentiras, não sei porque não usam essa palavra. Usam palavras sofisticadas, não sei porque, em inglês.
É o modelo de uma democracia em crise. Mas por enquanto, é o que nós temos.
Na sua visão, como estão as lutas antirracistas hoje no Brasil e quais seus desafios principais?
A consciência racial cresceu muito. Dentro do movimento negro, mas na sociedade brasileira de modo geral. Mas o racismo é um gigante. É um monstro de grande complexidade. Não basta dizer ‘abaixo o racismo’, não é por aí.
Hoje, inclusive, até manipulam o discurso do movimento negro. Dizem as mesmas coisas que agradam a consciência dos negros, para acharem que isso é suficiente. Mas não é o discurso. Precisamos de fatos, políticas concretas.
Estas políticas exigem recursos financeiros, humanos, mobilização da sociedade, tanto negra como branca. Porque como falamos, todos esses problemas são estruturais. O racismo é estrutural, mas o machismo também é estrutural. O classismo é estrutural também. Os problemas sociais são estruturais.
Mas como você resolve o problema se você não enxerga essas estruturas? Com que ferramentas você muda essas estruturas? Tem que inventar caminhos, inventar estratégias.
Políticas de ação afirmativa, como as cotas, já mostram seus resultados. Em 10 anos já temos negras e negros que se formaram em algumas universidades públicas. Já temos negros e negras docentes nestas universidades. Ainda pouco representativos, mas é graça a essas políticas.
Mas já estão querendo acabar com essas políticas. Em 10 anos, você resolve o problema de um abismo acumulado? De quase quatro séculos?
Esse modelo de políticas de ações afirmativas que nós temos não foi inventado nos Estados Unidos. Foi na Índia. A Índia se tornou independente em 1947. Em 1950, as políticas de cotas estavam nas instituições indianas para as chamadas castas inferiores, os dalits. Que não tinham acesso à universidade e a todas as outras instituições, por causa de uma religião milenar baseada na pureza de sangue. Na realidade, uma forma de racismo.
Os indianos se deram conta de que não havia outro caminho. Precisariam enfrentar isso com políticas de cotas. Elas já estão na constituição indiana há 72 anos. No Brasil acham que 10 anos já são suficientes. Deveriam definir que seja por tempo indeterminado, até chegarem à conclusão que não precisa mais.
Fonte: Redação Brasil de Fato