Vinícola perdeu “temporariamente” a certificação; Salton era signatária do Pacto da ONU contra “escravidão moderna”
“Great Place to Work”. Em tradução livre, um “Excelente Lugar para Trabalhar”. Esse era o nome de uma das certificações concedidas à vinícola Aurora, empresa que, no fim de fevereiro, foi flagrada se beneficiando do uso de trabalho escravo em Bento Gonçalves, na região da serra do Rio Grande do Sul. No total, 210 funcionários de uma terceirizada foram resgatados.
Já a Salton, outra envolvida no caso dos escravizados da uva, é signatária do Pacto Global da ONU, documento que defende “trabalho digno para todos”. Um dos compromissos formais fixado na adesão é “tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna”.
Essas contradições expõem o mercado de certificações e pactos empresariais e suas limitações para acompanhar o desempenho das companhias certificadas. Como pode uma empresa envolvida com trabalho escravo ostentar o selo “ótimo lugar para trabalhar”? Quanto vale o compromisso de combater a escravidão moderna assinado por alguém que se beneficia diretamente desse tipo de crime?
Conhecida pela sigla GPTW e presente em mais de 90 países, a empresa Great Place to Work é vista no mercado como uma espécie de guia para quem quer entrar no mundo corporativo ou trocar de emprego para alavancar a carreira. Assim como a Aurora, empresas certificadas usam seu selo para recrutamento, propaganda institucional e anúncios publicitários.
Só neste ano, segundo seu site, a GPTW já certificou mais de 2.300 companhias no Brasil, o que teria “impactado” mais de 2 milhões de funcionários. No rol das certificadas estão grandes bancos, multinacionais e algumas das marcas mais conhecidas do país nos mais variados setores.
Após o flagrante de escravidão em Bento Gonçalves, a Great Place to Work informou à Repórter Brasil ter optado pela “suspensão temporária” da certificação da Aurora da relação de ótimos lugares para trabalhar até que haja um “desfecho oficial do processo investigativo”.
Serviço pode custar R$ 4,5 mil
Companhias que desejam receber o reconhecimento de “ótima empresa para trabalhar” precisam remunerar a dona da marca GPTW. Além do título, a empresa também vende serviços de consultoria às que querem melhorar o “clima organizacional” e o ambiente de trabalho.
O preço de um pacote de certificação oferecido pela GPTW pode chegar a R$ 4.500 por mês, a depender do tamanho da empresa. Esse valor remunera a aplicação de uma pesquisa de opinião aos funcionários, a inclusão da empresa-cliente no ranking de “melhores empresas” e a exposição da sua marca no site do GPTW, entre outros benefícios. O valor pago pela Aurora não foi informado pela certificadora, que salienta ainda que “o selo GPTW é concedido se, e somente se, determinados critérios de excelência pré-estabelecidos forem atendidos”.
À reportagem, a Salton afirmou ter aderido ao Pacto em 2022 porque o documento “auxilia a empresa na integração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável à sua gestão”. Disse ainda ter notificado os responsáveis pela iniciativa sobre o flagrante de trabalho escravo no início de março. “A implementação de melhorias apresentadas ao Pacto Global e demais stakeholders [partes interessadas, em tradução livre] da empresa ocorrerá de maneira sistematizada por meio do plano de melhoria continuada que já está em execução”, diz a nota.
A Salton também possui certificações ISO, voltadas para questões ambientais da produção, mas que não abordam direitos humanos e trabalho digno. “Está no plano de ação da empresa, seguindo uma estratégia corporativa, a implementação de uma certificação que envolva questões sociais”, informou a vinícola.
Penalidades podem trazer eficiência
Apesar das limitações do mercado de certificações, há uma tendência – fomentada em grande parte por europeus e americanos – que pode forçar um monitoramento mais acurado das cadeias produtivas por parte das empresas: a ampliação de multas e outras penalidades.
“Alguns mercados externos fecham as portas para empresas que não praticam a devida diligência, que é o acompanhamento minucioso de toda a cadeia. Então as companhias que são exportadoras começam a olhar essa questão com mais atenção do que uma que produz apenas para o mercado interno”, afirma Heidi Buzato, coordenadora social no Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), organização que atua na promoção do uso sustentável de recursos naturais.
Há exemplo disso no próprio episódio da escravidão na uva. Em março, após contato da reportagem da Repórter Brasil, a rede de supermercados El Corte Inglés, muito popular em Portugal e na Espanha, baniu de seu site as ofertas do suco Casa de Bento, produzido pela Aurora.
Fonte: Brasil de Fato