Pessoas negras são alvo do dobro de abordagens em relação a pessoas brancas
Estudo nomeado “Entrada em domicílio em caso de crimes de drogas: geolocalização e análise quantitativa de dados a partir de processos dos tribunais da Justiça estadual brasileira”, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no início deste mês, identificou que bairros mais ricos e com população predominantemente branca são praticamente imunes à entrada da polícia em domicílio para busca de entorpecentes.
O levantamento foi realizado em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Os dados permitiram a análise da geolocalização, ou seja, do local onde as ações policiais ocorreram. Entre os casos com entrada em domicílio, verificou-se que em 56% não houve informação sobre a existência ou inexistência de consentimento para a entrada; em 34% houve alegação de que a entrada foi autorizada; e em 7% dos processos houve versões conflitantes sobre a permissão para entrada. Já a recusa à entrada foi registrada em apenas 3% dos processos.
Ainda, de acordo com a investigação, réus negros (46,2%) representam mais que o dobro dos abordados em relação aos brancos (21,2%). As entradas em domicílio também apresentam diferença: 23,6% constituem processos referentes a réus brancos, enquanto os casos de entrada em domicílios de pessoas negras foi quase o dobro, conforme registro em 44,3% de processos.
Cláudio Galdino, geógrafo, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), chama atenção para o entendimento compartilhado por parte da população de que existe na sociedade brasileira uma “igualdade racial”, principalmente, quando comparado a outras localidades em que existiram políticas legais segregacionistas, a exemplo do [Apartheid] Estados Unidos.
O pesquisador adverte que o processo histórico marcado pela escravização no qual a população africana foi forçosamente trazida para o Brasil trouxe uma série de consequências, que podem ser visualizadas ao considerarmos as relações entre localização e racismo.
Ele aponta que a violência institucional constitui um ciclo, uma vez que, a falta de políticas públicas leva e ao mesmo tempo mantém a população negra em regiões que apresentam maiores índices de criminalidade e pobreza. Isto porque, o custo de vidas nestas regiões tende a ser mais baixo e negros e negras apresentam menores rendimentos, o que tem entre suas razões, o fato de serem evadidos das escolas e do mercado de trabalho.
“Quando nós analisamos as relações entre território e desigualdades étnico-raciais nós percebemos que a população negra, em sua maioria, está localizada nas regiões que margeiam os grandes centros urbanos. A população negra está concentrada em regiões mais carentes, em regiões onde os indicadores de violência são maiores não porque as pessoas negras estão nestes locais, mas porque o Estado não se faz presente, as políticas públicas não são efetivas e são estes fatores que também os levaram a estar nestas áreas”, diz.
A pesquisa encontrou como principais motivações o patrulhamento de rotina ou a abordagem com base em comportamento suspeito (indicado em 32,5% dos processos) e a denúncia anônima (30,9%). Em menor proporção, foram registradas como motivação para a abordagem a existência de denúncia não anônima (7,2%) e o cumprimento de mandados de busca e apreensão (6,0%).
O estudo considerou as cinco capitais com o maior número de entradas em domicílio de cada região do Brasil, sendo: Brasília no Centro-Oeste, Curitiba no Sul, Manaus na região Norte, Fortaleza no Nordeste e Rio de Janeiro na região Sudeste.
Nessas cinco cidades com maior número de entradas em domicílio, foi observado o total de 307 abordagens. Dessas, 84,7% ocorreram em bairros predominantemente ocupados por pessoas negras e 91,2% ocorreram em bairros com renda domiciliar mensal per capita de até um salário-mínimo. Apenas seis entradas ocorreram em bairros com renda de cinco a dez salários-mínimos, das quais metade foram entradas respaldadas por autorização judicial. Não houve nenhum registro de entrada domiciliar em bairros com renda superior a dez salários-mínimos.
De acordo com Galdino, a naturalização das violências contra a população negra pela maioria da população brasileira é reflexo do racismo, esta opressão ainda é responsável por levar negros a serem vistos sempre como “suspeitos”. O docente pontua que a falta de sensibilização da sociedade é extremamente grave.
“Muitas vezes, não conseguem ver que a dor daquela mãe, daquele pai e amigos que moram em regiões mais afastadas e carentes é a mesma de pessoas que moram em áreas mais nobres. Não se trata de defender a violência generalizada, mas compreender que todos, independentemente de pertencimento étnico-racial, possuem papel preponderante no combate ao racismo”, ele convoca.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.