Para as entregadoras, o “score”, novo algoritmo de pontuação do iFood, prejudica especificamente as mulheres
São mães. Trabalham como entregadoras em média 12 horas por dia, seis dias na semana. Foram para o trabalho em aplicativo na busca de ter uma renda e, ao mesmo tempo, dar conta dos cuidados com a família. De não ter patrão – “mas não adiantou muito não, que o iFood está querendo mandar demais”, disse uma delas. Além do corre na moto o dia todo, cabem a elas, dentro de casa, as tarefas domésticas. A história é comum a todas as mulheres entregadoras ouvidas pelo Brasil de Fato.
Em seus relatos, além das queixas comuns a toda a categoria – como a baixa remuneração – as entregadoras destacam que a falta de banheiro e as formas pelas quais o algoritmo “pune” os trabalhadores, em suas palavras, prejudicam especialmente as mulheres. Elas se referem, por exemplo, a uma nova dinâmica de pontuação do iFood, a plataforma hegemônica do setor no Brasil.
O “score” é um sistema de pontuação de 1 a 3 atualizado semanalmente, que cada entregador que tenha trabalhado ao menos 28 horas em um mês recebe. Quem fica com nota baixa, recebe menos pedidos. Segundo o iFood, o cálculo é feito com base no percentual de pedidos que a pessoa aceitou, coletou e entregou; o tempo em que a entrega é feita; e a pontualidade, quando é feito um agendamento das horas que serão trabalhadas.
Depois de ser implantado em Belém (PA) e Curitiba (PR) em dezembro de 2022, o score está se expandido por todo o país. “Quanto mais alto o nível, maior a prioridade na distribuição de pedidos” informa o iFood, ao ponderar que “o nível do score é apenas um dos fatores que influenciam na distribuição de rotas”.
“Nós, mulheres, sempre estaremos em desvantagem”
Na prática, é preciso cumprir metas, mesmo que sejam nebulosas, para que se possa seguir trabalhando. Com nota ruim, pedidos não tocam, dinheiro não entra. Trata-se de um exemplo concreto do que a pesquisadora Ludmila Abílio diz sobre uberização em entrevista ao Brasil de Fato, quando cita que é exigido dos trabalhadores um “engajamento permanente para se manter no jogo”.
Na explicação sobre o ‘score’ dada pelo iFood aos trabalhadores, é citada a necessidade de ‘evoluir’ para melhorar a nota / Reprodução
Pamela Monteiro, entregadora em Goiânia (GO), conta que desde que o score começou, tem vezes em que no dia inteiro consegue fazer só uma corrida. “Para eu conseguir rodar melhor, tive que trabalhar das 7h às 0h. Mesmo assim, não saí do 1”.
“Nós, mulheres, sempre – sempre – vamos estar em desvantagem com o score”, avalia Ludmila Ferreira, também entregadora na capital de Goiás. “Porque homem sai de casa para trabalhar, ele simplesmente sai, não tem hora para voltar. Ele pode ficar o tempo inteiro lá, quando ele chegar em casa, os filhos estão cuidados, a casa está arrumada, a comida está pronta. E mulher, não. Mulher não tem como: é impossível a gente se doar ao iFood 100% igual o iFood quer”, argumenta.
Com um filho pequeno, Ludmila começou a trabalhar para a plataforma em novembro de 2022 e, apesar de parte da renda ser revertida em gasolina e manutenção da moto, fazia em média R$500 por semana. Pouco mais que um salário mínimo. Desde que o sistema de pontos começou, sua renda caiu para cerca de R$200 por semana. “Nós, mulheres, na questão do score, fomos muito atingidas mesmo. Eu nunca passei do 1. Não consigo. E eu trabalho duro, firme, todo dia”, narra.
Beatriz Ferreira – que apesar de compartilhar a mesma cidade e sobrenome que Ludmila, não é sua parente – já organizou diversas greves por melhores condições de trabalho. A conversa de cerca de uma hora foi intercalada por pausas para que ela fizesse entregas. Com o microfone mutado, o vídeo mostrava Bia dirigindo com o capacete na cabeça e a bag cheia nas costas. Não pode vacilar, senão perde o score 3. “Estou na luta há quatro anos pelo meu filho, minha família”, diz, ao lembrar que quando começou neste trabalho, raramente via colegas mulheres.
Todos os dias, com exceção de domingo, Bia começa a trabalhar às 7h. Em alguns momentos desliga o app para passar em casa, cuidar do filho, levar ele na escola, depois buscar. O menino fica com a avó das 17h às 19h, e aí, fim de expediente. Ou melhor, fim de expediente na rua. “Aí tem que cuidar do marido, do filho, da casa. É desse jeito, corrido”, relata. A rotina das outras entrevistadas é bem parecida. Se o app toca enquanto estão buscando filho na escola, fazem a entrega com a bag e a criança.
O serviço de entrega por app é um dos muitos em que a remuneração só vem de acordo com a demanda. Para trabalhar, o entregador precisa estar na rua à disposição – mas só recebe quando a plataforma apita. Além de não ser remunerado durante os chamados “poros do trabalho” – que é quando alguém está no expediente de trabalho, recebendo mas não produzindo, como quando vai ao banheiro por exemplo – agora as entregadoras enfrentam uma dificuldade a mais.
Na avaliação das entrevistadas, o uso deste tempo (mesmo que não remunerado) para levar o filho para a escola ou preparar o almoço, tem sido penalizado. Desce o score, descem os pedidos, desce o dinheiro no bolso, afirmam.
“Os apps dizem que não tem vínculo empregatício, mas na verdade tem, porque é tanta regra, tanta coisa que eles impõem para a gente cumprir…”, analisa a entregadora Nathália Isabela, ao descrever a angústia de ter de adivinhar os critérios e os motivos por não receber nota maior.
“Quem depende disso mesmo, fica uma coisa ‘nossa, se mudarem a rota vai dar merda semana que vem’, ‘a avaliação do cliente, vou subir no prédio para ver se ele me dá avaliação boa’, chega semana que vem, o score está igual. A gente vai precisar começar a dar gorjeta para os clientes, para ver se eles dão avaliação boa e sobe o score”, brinca.
Mãe solo de uma menina de seis anos, Nathália perdeu o emprego em um restaurante quando chegou a pandemia de covid-19 e encontrou no trabalho em apps um jeito de se sustentar. Achou que daria para trabalhar de segunda a sexta. “Mas trabalho de domingo a domingo. E se existir outro dia na semana eu vou ter que trabalhar nele também”, resume.
Sentada do lado de Nathália, também esperando há horas que o app tocasse, estava outra entregadora, Débora Santana. Casada e mãe de duas meninas, Débora não fica nenhum dia sem trabalhar 12h. Faz um ano que trabalha nas plataformas digitais e, apesar da “canseira”, diz gostar porque a remuneração é melhor que o trabalho fixo que tinha antes.
“Você toma bronca dos apps”
Letícia Mendes também trabalha sem nunca folgar. Sem veículo próprio, aluga uma moto verde da empresa Mottu e, já que tem de pagar R$192 por semana por isso, as entregas são de segunda a segunda. Sai do Capão Redondo, bairro periférico da zona sul paulistana onde vive de aluguel, e roda a cidade inteira. “Tem dias que vai 15h, 12h. No dia que tem que fazer mesmo, são 20h trabalho”, calcula. “Escravidão mesmo, escravidão”, resume Letícia.
Aos 27 anos, ela vive com o marido, que trabalha como gari, e o filho de três anos, que nasceu com uma má formação no ouvido e exige cuidados especiais. Com a pandemia, perdeu o serviço de telemarketing e depois teve dificuldade de encontrar outro.
Na Drogasil ficou pouco tempo. Na virada do ano, seu filho ficou muito agitado com os fogos de artifício, quase teve uma parada cardíaca. Depois de faltar cinco dias no trabalho para acompanhar a internação hospitalar da criança, foi demitida. “Então por isso que estou nos aplicativos. Mas não compensa, não. É muito cansativo”, sintetiza. A entregadora trabalha para o iFood e a Rappi, mas diz priorizar a segunda plataforma. Entrega de compras em mercado é o que mais tem feito.
Em nota, o iFood informou que desde 2019 oferece seguro gratuito contra acidentes pessoais. E que, em 2022, ampliou a cobertura para incluir “licença-maternidade, indenização em casos de câncer de mama e colo de útero e auxílio financeiro se precisarem cuidar dos filhos em caso de doença ou acidente”.
Ao Brasil de Fato, a Rappi informou que lançou, em agosto de 2022, o “Programa Sou Rappi”: “um pacote de ações e promoção de bem-estar e relacionamento”. Entre elas, diz a empresa, “estão a oferta de seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental, plano de assistência à saúde”.
Em um ano, Letícia sofreu cinco acidentes. Diz não ter recebido qualquer assistência. “Os apps não pagam nada para a gente, nada. Mesmo se eu tiver com um pedido nas costas. Eles não estão nem aí”, critica. Quando alguém se acidenta, conta, colegas fazem vaquinhas ou rifas para ajudar.
“‘Ah, você trabalha quando você quer'”, ironiza. “Não é verdade. É tão pouco que você ganha, que tem que trabalhar sem parar”, expõe a entregadora. “Fora que você toma bronca toda hora dos aplicativos né?”. Ela se refere aos bloqueios temporários da Rappi. Por diferentes motivos, a plataforma pode determinar que durante um período os pedidos não podem tocar para aquela pessoa.
“Bloqueia do nada. Se você chegar no mercado, aí o cliente quer uma bolacha, mas a bolacha não tem, aí o pedido é cancelado, você é bloqueado. Por 2h, por 1h. Se você vai no estabelecimento e ele estiver fechado, bloqueia. Aí você está do outro lado da cidade, para voltar não adianta, então você fica parada lá na rua”, descreve Letícia.
“Se você tirar o que trabalha mesmo fazendo, de 10h eu trabalho 3h entregando e o resto, tudo rodando pela cidade à toa. Indo até o estabelecimento, esperando o bloqueio passar. E é quase todos os dias que acontece isso”, conta.
A reportagem perguntou para a Rappi porque e como funciona esse sistema de bloqueios temporários. A empresa se limitou a dizer que os bloqueios “são ocasionados e seguem as normas descritos nos Termos e Condições da plataforma”. Neste documento, constam na lista de motivos para bloqueio a “má qualidade do serviço”, a “infração de deveres cívicos” e, também, a “mera liberalidade da operadora”.
Assédio e pontos de apoio
Os bloqueios e o ranking de notas não são as únicas questões que atravessam o cotidiano das trabalhadoras de aplicativo. “Direto dou entrega para a pessoa e ela está pelada. Aí a pessoa ‘ah moça, não repara não, é que eu achei que era um homem’. Sendo que no aplicativo fala que é uma mulher”, conta Bia.
Das histórias de “elogios”, assédio ou falta de respeito pelo fato de serem mulheres, todas as entrevistadas se referem a situações vividas com clientes, estabelecimentos ou homens na rua, não com colegas entregadores.
Pontos de apoio, ou seja, lugares fixos para que entregadores possam sentar, carregar o celular, tomar água e ir ao banheiro, são uma das demandas centrais das mulheres.
“Como que a gente vai pedir num posto de gasolina para usar o banheiro? Olha o meu tamanho. Não vou pedir. Fico às vezes 4h, 5h sem usar o banheiro. Só se tiver um shopping aberto, um mercado, eu vou. Mas se não, eu tenho medo, vai saber a mente do ser humano. Posto de gasolina você entra no banheiro, fecha a porta, entra alguém, já era. Eu trabalho sozinha na rua. Prefiro andar mais mal arrumada mesmo, essa é a segurança que eu tenho”, conta Letícia.
A Rappi informou que possui os Espaços Rappi Entregador, mas não especificou quantos existem. Já o iFood criou o primeiro ponto de apoio em agosto de 2020 e, segundo a empresa, atualmente existem 764 no país. Em Goiânia, o espaço foi inaugurado este ano e fica na Vila São Tomaz.
“Tem lugar de apoio, mas é longe, não dá para gente ficar indo”, relata Débora. “Da área que eu trabalho, o ponto de apoio mais perto fica a 13km. Então, imagina, daqui para lá já faço xixi na roupa”, critica Beatriz.
Nóis por nóis
Recentemente Letícia sentiu medo de entrar num bairro onde precisava fazer a entrega. Postou a situação num grupo de Whatsapp e mandou a localização. Em poucos minutos, entregadores apareceram para ir junto.
Foi também por meio de um grupo que ela ficou sabendo da mobilização para reagir a agressão que um entregador sofreu de clientes em um condomínio no bairro da Mooca, depois que ele se recusou a entregar o pedido na porta do apartamento. Letícia foi uma das 500 pessoas que, de moto, fizeram um ato no local para exigir respeito.
“Os grupos, querendo ou não, a gente se protege”, conta. Em vários deles, só tem entregadoras mulheres. “Aí acaba o turno, manda mensagem, ‘gente, boa noite, cheguei bem em casa'”, conta. “É muito legal. Eu particularmente gosto desses grupos por conta disso”, conta Letícia. “Se alguém precisar de mim, eu também vou”.
Por meio de grupos como estes que greves por melhores condições de trabalho são organizadas. A próxima, convocada para acontecer em âmbito nacional, está marcada para acontecer durante o feriado de Corpus Christi, no próximo dia 9.
Fonte: Brasil de Fato