País joga no lixo 40 anos de pesquisa sobre alfabetização e ensino pré-escolar para retomar métodos superados
É provável que você, leitor ou leitora que tem mais de 40 anos, lembre da apostila da abelhinha, que ensinava as letras através da repetição fonética. A, Bá, Cá, Dá. Dois patinhos na lagoa e aquela coisa toda. De lá para cá, o ensino infantil e a pesquisa sobre desenvolvimento cognitivo das crianças evoluíram muito e o processo de alfabetização evoluiu com eles, resultado do empenho de educadores e de pesquisadores da educação.
O que se sabe hoje é que o período de zero a seis anos é extremamente importante no desenvolvimento emocional e intelectual da criança.
Na contramão da evolução, porém, o governo Bolsonaro (PL) está em processo de ignorar educadores e cientistas e promover um retrocesso que não prejudica só a educação infantil. Mas também pode atrapalhar os esforços de inclusão e de criação de um ambiente escolar capaz de se adaptar às necessidades dos estudantes e não o contrário.
A principal medida, foi a instituição por decreto, já em 2019, da Política Nacional de Alfabetização (PNA) que privilegia o método fônico como processo de alfabetização e passa por cima da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento fundamental da política educacional brasileira e que é resultado não de um governo, mas do trabalho de técnicos do governo federal, profissionais com atuação na ponta e da sociedade civil, além de dialogar fortemente com os principais centros de pesquisa em educação do país.
A PNA é parte do “legado” do ex-ministro Abraham Weintraub no Ministério da Educação.
Da democracia e diversidade na alfabetização à varinha de condão
Desde os anos 1980, a política educacional do país é construída através de um diálogo que inclui não só o Ministério da Educação, mas também o Conselho Nacional de Educação, as secretarias estaduais e municipais e seus conselhos, os programas de pesquisa em Educação das universidades e o INEP. Toda essa rede é formada não só por educadores e pesquisadores, mas também por instituições da sociedade civil, o que ajuda o país a ver a educação em toda sua diversidade.
A PNA, porém, ignora tudo isso e apesar de se dizer uma “alfabetização baseada na ciência”, ignora e omite décadas de pesquisas que apontam a limitação e inadequação do método fônico. Em resposta à PNA, o CENPEC, uma organização da sociedade civil criada em 1987, elaborou um extenso relatório explicando as limitações da PNA e da metodologia que ele promove.
“A PNA defende um processo de aprendizagem da língua pautado pelo automatismo, ignorando que as crianças são sujeitos sociais, sociológicos e culturais, portanto, sujeitos integrais que aprendem na relação que desenvolvem com o mundo. Explicitar conceitos fônicos e treinar a criança para codificar e decodificar não garante a aprendizagem complexa da linguagem escrita para o exercício pleno da comunicação em todas as suas necessidades orais e escritas. É possível ensinar sobre o sistema de escrita alfabética para que a criança chegue ao conhecimento das relações entre fonemas e grafemas, de forma mais significativa, inclusive em coerência com as características da infância”, detalha o texto.
Em 2021, a deputada federa Tabata Amaral (PSB) convocou uma audiência na Câmara Federal sobre o assunto e convocou o Ministério da Educação, que ignorou o convite. No evento, especialistas manifestaram preocupação com o programa. Na ocasião, a coordenadora de Programas e Projetos de Alfabetização do CENPEC, Maria Alice Junqueira detalhou a avaliação do Programa à Agência Câmara de Notícias:
“O PNLD [Programa Nacional do Livro Didático] traz orientações para que as obras pedagógicas didáticas que começarão a chegar às escolas no fim do ano estejam alinhadas à Política Nacional de Alfabetização. Quando se alinham as obras, vamos encontrar nos livros propostas de recitação do alfabeto e associação de letra inicial e sua grafia a um objeto”, detalhou Maria Alice. “Ou seja, é muito parecido com o que a gente tinha nas cartilhas antigamente. Não é isso o que a gente entende como concepção de alfabetização, pelo menos desde os anos 1990”, acrescentou.
O Ministério da Educação, porém, ignorou solenemente a preocupação dos especialistas e segue na implantação do programa. Com isso, o país incluiu as cartilhas de alfabetização no Programa Nacional do Livro Didático. Com a adesão de estados e municípios, os novos livros devem começar a chegar nas escolas em 2023.
Desperdício de dinheiro
Não se trata só da adoção de livros novos e de uma metodologia em detrimento de outras. São décadas de formação de professores e gastos com mobiliário e material didático colocados de lado. Além disso, a opção por uma metodologia abandona uma política que permitia maior autonomia nas escolas e o respeito às particularidades locais, o que inclui a política de inclusão.
O relatório do CENPEC aponta outro problema grave na PNA: “A PNA relega ao status de “crença” inúmeros estudos e pesquisas do campo educacional que não são da área da ciência cognitiva e isso, além de um erro conceitual absurdo, é uma posição preconceituosa e que desvaloriza todo o campo da pesquisa educacional no país, com universidades e pesquisadores de renome, reconhecidos nacional e internacionalmente por seus feitos e descobertas. O que não se pode é entender que são válidas somente as evidências de determinado tipo de pesquisa e de ciência, de determinada área
de conhecimento, relegando todos os outros ao estatuto de “crença”. Destaca-se a importância de reafirmar que os resultados de pesquisas realizadas em ambientes controlados, de laboratório, fora dos contextos sociais reais, não podem balizar, sozinhas, as práticas de ensino. É fundamental considerar a pluralidade de posições porque vivemos numa sociedade plural e, ao se falar de Brasil, estamos definindo ações para um país de dimensões continentais e uma diversidade que precisa ser considerada”.
O que a PNA promove é o equivalente a implodir um prédio inteiro ao invés de corrigir alguns problemas com reformas. São bilhões de reais jogados fora, além do trabalho e esforço de milhares de professores no país todo. A Política, porém, não é um fato isolado. É mais um efeito deletério do desprezo que o país tem por professores e que se manifesta pela ausência de indicação de pessoas sem formação ou experiência na área para cargos relevantes na rede de educação do país.
No Paraná, por exemplo, o atual secretário de Estado da Educação, Renato Feder é mestre em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e formado em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mas sem formação ou experiência relevante na área de educação. Isso apesar de Curitiba ter dois dos programas de pós-graduação em Educação extremamente bem qualificados na Universidade Federal do Paraná (Nota 6 na Capes) e na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Nota 5). As notas entre 5 e 7 indicam excelência nacional e internacional.
Fonte: Redação Jornal Plural