Universo é ocupado predominantemente por mulheres negras e rendimento não ultrapassa R$ 930 mensais
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstram que, embora, entre 2019 e 2021, o número de pessoas ocupadas tenha saltado de 95,5 milhões para 95,7 milhões no país, o contingente de trabalhadores domésticos caiu de 6,2 milhões para 5,7 milhões no mesmo período.
Segundo a Lei Complementar 150/2015, considera-se “empregado doméstico” como sendo aquele que: “presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”. A categoria abrange funções como diaristas, caseiros, cuidadores de idosos e enfermos, jardineiros, motoristas.
O levantamento também traz informações sobre o perfil dos trabalhadores domésticos no país. A maioria deles, 5,2 milhões são mulheres, o que corresponde a 92% do total de colaboradores na área. E dentre elas 3,4 milhões são negras, representando 65%. A idade média das trabalhadoras domésticas foi de 43 anos e a maioria possui entre 30 e 59 anos.
Outra informação importante relevada pelo estudo aponta o aumento da informalidade na área que já apresentava altos índices na edição anterior. Em 2019, 1,5 milhão de trabalhadores domésticos possuíam carteira assinada face a 4,2 milhões sem vínculo formal de trabalho. Isto quer dizer que apenas 27% estavam assegurados pela legislação trabalhista contra 73% desprotegidos.
Em 2021, a taxa de trabalhadores domésticos com carteira assinada recuou para 1,2 milhão, atingindo 24%. Por outro lado, o índice de trabalhadores domésticos sem carteira assinada cresceu para 76%, totalizando 4 milhões de pessoas. Consequentemente, o número de colaboradores domésticos com previdência social regrediu de 2,1 milhões (37,2%) em 2019 para 1,8 milhão (33,7%) em 2021.
O rendimento médio também diminuiu, passando de R$ 1.016 em 2019 para R$ 930 em 2021. Houve queda no pagamento em todas as localidades do país, porém o Nordeste é a região que menos pagou no último ano, chegando ao valor de R$ 615 mensais. Já o Sul apresentou rendimento médio de R$ 1.116 em 2021. A diferença entre as duas localidades ultrapassa R$ 500 por mês. Ainda, segundo o levantamento, trabalhadores sem carteira assinada receberam 40% menos do que as com carteira assinada, já trabalhadoras negras ganharam 20% menos do que as não negras.
O tempo de permanência no mesmo trabalho não oscilou significativamente: em 2019, a maioria (30,5%) tinha menos de um ano. Em 2021, o índice de trabalhadores com menos de 12 meses no mesmo local aumentou para 32,3%. No entanto, trabalhadores prestando serviços domésticos no mesmo ambiente por mais de 10 anos encolheu de 20,8% para 19,2%.
Pandemia e reforço das desigualdades de gênero, raça e classe
Para a advogada trabalhista, Júlia de Almeida, uma das justificativas que deve ser considerada para a queda do número de trabalhadores no segmento, é a pandemia de Covid-19. O setor foi um dos mais afetados juntamente com os setores de alojamento, alimentação e construção civil. “Com o isolamento social, muitas famílias passaram a ficar mais tempo em casa, assumindo o trabalho doméstico e dispensando muitos colaboradores contratados para a função”, explica.
Em abril de 2020, o país registrou o menor contingente da categoria de toda série histórica do IBGE, 5,5 milhões de trabalhadores domésticos, sendo que apenas 1,5 milhão (28,5%) possuía carteira assinada. Nos três primeiros meses daquele ano, 727 mil postos neste tipo de atividade deixaram de existir, representando retração de 11,8%. A queda mais intensa ocorreu entre os sem carteira assinada (-12,6%), já entre os com carteira assinada a retração foi um pouco menor (-9,6%).
Em março de 2020, um manifesto de autoria de filhos e filhas de trabalhadoras domésticas intitulado “Pela vida de nossas mães” foi publicado logo após a morte de uma mulher de 63 anos, moradora do Rio de Janeiro. Ela foi infectada após seguir trabalhando na casa dos empregadores que haviam passado o carnaval na Itália e contraído a doença no exterior. A carta solicitava “dispensa remunerada” à categoria entre outros cuidados que diminuíssem o risco de exposição como o fim das saídas para fazer compras em supermercados e farmácias.
Entretanto, Almeida lembra que mesmo antes da crise sanitária, trabalhadores domésticos já constituíam um grupo extremamente vulnerabilizado. “A maior parte deste segmento vive na informalidade, sem vínculos trabalhistas. Um exemplo é o grupo das diaristas, que é ainda mais precarizado. É muito comum vermos este tipo de serviço ser ‘combinado’ sem chegar ao papel. Isto dificulta imensamente o acesso a direitos como férias, décimo terceiro, proteção em casos de acidentes de trabalho. A classe também sofre muita desvalorização e discriminação”, pontua.
Para Almeida, o desprestigio enfrentado pela categoria é reflexo do perfil mais recorrente destes trabalhadores: mulheres negras. Lélia Gonzalez, mulher negra, uma das pensadoras brasileiras mais importantes, liderança do Movimento Negro Unificado, ao refletir sobre as relações sobre racismo e sexismo, considerou que a “empregada doméstica” na contemporaneidade corresponde a “mucama permitida”, em referência às mulheres negras escravizadas pela elite brasileira durante o período colonial. Trazidas forçosamente do continente africano, elas eram submetidas aos cuidados domésticos na “casa grande”, acompanhavam as senhoras e crianças e frequentemente sofriam castigos.
Para Gonzalez, o processo de modernização no Brasil está assentado num modelo excludente, deixando um número significativo de pessoas à própria sorte, ou seja, condicionadas ao desemprego e ou em condições de trabalho extremamente precárias, a exemplo das trabalhadoras domésticas. Tais mulheres, majoritariamente negras são estigmatizadas e, assim, associadas a papeis subalternos. Os corpos negros são frequentemente relacionados a estigmas como hipersexualização, animalização e, então, são considerados pelo imaginário social dominante como mais resistentes a dor e violência.
Almeida lembra da “PEC das Domésticas” (Emenda Constitucional nº 72), estabelecida em 2013, e responsável por instituir direitos para trabalhadores da área como salário-mínimo fixado em lei, repouso semanal remunerado, entre outras garantias. “É uma conquista muito importante para a categoria, mas ainda é preciso garantir que a Lei seja cumprida. É necessário avançar nas discussões que assegurem os direitos da classe”, adverte a profissional.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.