Anvisa testará versão digital para alguns remédios até 2026; diversos países já aderiram, mas tema ainda divide opiniões no país
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu mais um passo em direção à digitalização das bulas de medicamentos. Na última semana, a agência aprovou as diretrizes transitórias para um projeto-piloto que testará a bula digital no Brasil.
O projeto-piloto, que vai até 31 de dezembro de 2024, será implementado em duas fases. Na primeira, estão incluídos medicamentos destinados às instituições de saúde, assim como aqueles de destinação governamental, entre outros (veja a lista completa abaixo).
A segunda fase prevê uma expansão gradual para os demais remédios. Após esse período, as informações coletadas servirão de subsídio para uma futura regulamentação definitiva da bula digital no país.
O que é bula digital?
A bula digital é uma versão eletrônica da bula impressa, acessível por meio de um código de barras bidimensional, conhecido como QRCode, contido na embalagem do produto.
Assim como a bula tradicional, a versão digital conterá as “informações técnico-científicas e orientações aprovadas pela Anvisa”. O formato também permite redirecionar o consumidor para links, vídeos e áudios, que podem ajudar no uso adequado dos medicamentos.
Primeira fase
No primeiro momento, a bula digital será disponibilizada somente para medicamentos:
- em embalagem de amostras grátis;
- com destinação a estabelecimentos de saúde, como hospitais e postos de saúde;
- com destinação governamental, acondicionados em embalagens que contenham as marcas governamentais próprias do Ministério da Saúde;
- medicamentos isentos de prescrição, acondicionados em embalagens múltiplas.
Como fica a bula impressa?
O projeto-piloto prevê que as bulas impressas devem ser fornecidas aos consumidores, caso sejam solicitadas pelo estabelecimento de saúde, profissional de saúde ou pelo paciente.
Além disso, os estabelecimentos que comercializam esses medicamentos devem sinalizar visualmente possibilidade de solicitar a bula impressa.
Reações mistas
As bulas digitais têm gerado discussões e dividido opiniões entre a população, entidades de classe e autoridades. Uma pesquisa Datafolha deste ano constatou que 81% da população brasileira de 16 anos ou mais afirma ser contra a perda do direito à bula impressa nos medicamentos.
Profissionais de saúde e a indústria farmacêutica defendem a digitalização como um avanço necessário, que pode facilitar o acesso às informações sobre os medicamentos. De acordo o presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, a bula digital “pode gerar uma revolução na forma de transmissão das informações sobre o produto prescrito para o paciente”, segundo escreveu em artigo para a Folha de São Paulo.
“A bula digital contribuirá para o aumento da adesão dos pacientes aos tratamentos ao permitir a atualização imediata e contínua das orientações apresentadas com o auxílio de inovadores recursos multimídia — didáticos, interativos e mais eficazes —, como áudios, vídeos, infográficos e a palavra de especialistas”, escreveu. “Há que se considerar também os ganhos de produtividade da escolha. Além de prover mais qualidade e rapidez de informação para os pacientes, a bula digital pode contribuir para a racionalização de processos no sistema de saúde público e privado, com redução de desperdícios e custos das empresas”
Por outro lado, órgãos de defesa do consumidor e o Ministério Público Federal (MPF) argumentam que a medida pode prejudicar a acessibilidade dos produtos e reduzir a segurança dos consumidores, especialmente dos mais vulneráveis.
O Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec) se posicionou contra a proposta, alegando que a medida pode aumentar a desigualdade para quem não tem acesso pleno à tecnologia. O Idec também alertou que a mudança pode comprometer a segurança do consumidor, podendo resultar na captura ilegal de dados.
Já o MPF expressou preocupação com a ausência da bula impressa em um contexto de índices elevados de automedicação. Uma pesquisa do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) revelou 86% dos brasileiros admitem tomar medicamentos sem prescrição médica.
Bula digital no mundo
A digitalização da bula é uma tendência global que já vem sendo discutida em outros países. Diversos países estão testando ou já concluíram projetos-piloto, semelhantes ao da Anvisa, sobre o uso da bula digital.
A União Europeia concluiu neste mês o seu projeto-piloto, que durou um ano, e focado no desenvolvimento de orientações para a utilização da bula digital em países como Dinamarca, Países Baixos, Espanha e Suécia. Em 2018, Bélgica e Luxemburgo também introduziram programa-piloto conjunto que durará até 2025.
No Canadá, a implementação provisória da rotulagem eletrônica para medicamentos prescritos foi anunciada em 2022 e iniciou a substituição das bulas impressas pelas digitais. Na Austrália, a partir de setembro de 2023, produtos injetáveis administrados por profissionais de saúde não precisam mais vir acompanhados de bula impressa.
No Japão, a legislação foi alterada em 2019, exigindo que as empresas farmacêuticas substituíssem a bula física pela digital. A norma entrou em vigor em 2021, com um período de transição de dois anos. No entanto, bulas impressas continuam disponíveis para medicamentos isentos de prescrição.
Bula digital no Brasil
A discussão sobre a bula digital ganhou força com a sanção da Lei 14.388, em 2022, pelo então presidente Jair Bolsonaro. A lei atribuiu à Anvisa a competência para definir quais medicamentos terão apenas a bula digital. Essa legislação teve origem no PL 3.846/2021, de autoria do deputado André Fufuca (PP-MA), e o texto foi aprovado pelo Senado em abril de 2022, sob relatoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS).
A norma estabeleceu um prazo de 12 meses, após a regulamentação do sistema, para que todas as etapas sejam implantadas. Ainda em 2022, a Anvisa iniciou o processo regulatório para a implementação da bula digital. O projeto passou por consulta pública em dezembro de 2023. Neste ano, a Anvisa deliberou sobre a proposta durante reunião da diretoria colegiada em 10 de julho.
Segundo Daniel Pereira, diretor da Anvisa e relator do projeto, a proposta está alinhada às tendências globais e visa a modernização e a transformação digital no setor da saúde. “Essa é uma oportunidade para aprimorar a acessibilidade e a personalização das informações de saúde”, afirmou Pereira
Em abril, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou o PL 715/24, que retira da Anvisa a competência para definir quais medicamentos terão apenas um formato de bula, argumentando que a medida pode prejudicar idosos que “não estão familiarizados com a tecnologia”. A proposta foi aprovada pela Comissão de Saúde em junho e ainda deve passar pela CCJ e pela Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) da Câmara dos Deputados.
Fonte: Jota Info