ANM, Banco Central e Receita Federal falham ou deixam de coibir operações com o roubo de minério em terras indígenas
A ANM (Agência Nacional de Mineração) tem uma fiscalização falha e omissa e não dispõe de um sistema eletrônico de controle da cadeia de custódia do ouro. Além disso, promove uma “interpretação equivocada” da legislação que leva a uma concentração de títulos minerários nas mãos de poucas pessoas. O Banco Central também adota uma fiscalização falha e pouco sanciona as DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários) envolvidas em ilegalidades com o minério. A Receita Federal não adota nota fiscal eletrônica para negociações com ouro.
A “responsabilidade institucional” sobre os processos de lavagem de dinheiro e de “esquentamento do ouro extraído em áreas protegidas”, como as terras indígenas como Yanomami, Kayapó e Munduruku, é uma das conclusões de um estudo elaborado pela organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental) em parceria com organizações indígenas e ambientalistas. O trabalho de 100 páginas intitulado “Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira” é divulgado nesta quarta-feira (15).
Segundo o estudo, a “fragilidade institucional” se agravou durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), levando a recordes de destruição da floresta amazônica provocada pelo garimpo ilegal. O crescimento pode ser calculado a partir das operações financeiras com ouro de um grupo de oito grandes DTVMs no país. Em 2018, esse grupo operou R$ 1,4 bilhão com o minério; em 2021, o valor saltou para R$ 7,4 bilhões.
Grande parte do minério veio de áreas protegidas e foi “esquentado” como se viesse de garimpos legalizados, diz o levantamento, mencionando conclusões de diferentes operações desencadeadas nos últimos anos pelo Ibama, PF (Polícia Federal) e MPF (Ministério Público Federal).
“O crescimento do garimpo ilegal é viabilizado pelo completo descontrole da cadeia econômica do ouro, sob responsabilidade do Estado brasileiro, num cenário em que diversas instituições concorrem, mediantes ações e omissões, para a expansão dessa atividade”, aponta o levantamento. Além do tema regulatório, o estudo cita outros três aspectos para explicar o crescimento da exploração do ouro no país: o macroeconômico, o político e o tecnológico e sociológico.
O aspecto político, diz o estudo, “reflete a vulnerabilidade das áreas exploradas frente a políticas de governo e à incidência do lobby do garimpo e da mineração – a exemplo do que se tem observado no Brasil no período de 2019 a 2022, com o sistemático desmonte da fiscalização ambiental, aliado a um aparelhamento da Funai sem precedentes no período democrático”.
De acordo com o levantamento, a lavagem e o esquentamento são facilitados principalmente por “insuficiências e inconsistências” no regime de PLG (Permissão de Lavra Garimpeira), instituído em 1989, durante o governo de José Sarney. No regime de PLG “não se exige do requerente a realização de pesquisa mineral prévia no processo de licenciamento”. Assim, “dispensa-se a apresentação de estimativas da capacidade de produção da lavra (ou mesmo a confirmação de que há jazidas na área em questão), dificultando a averiguação de incompatibilidades entre o título concedido e o volume de ouro extraído – facilitando, portanto, a utilização de PLGs para fraudar a origem ilegal do minério, isto é, para ‘esquentar’ o ouro”.
Estudo anterior da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) também identificou “expressivas evidências de descumprimento dos limites das áreas concedidas”. A auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) de nº 018.935/2019-2 constatou uma “descaracterização do regime de PLG”, que levou à “concentração irregular de títulos por pessoas físicas e empresas”. De acordo com o TCU, do total de 787 PLGs outorgadas no Pará, 66% “estavam sob domínio de 15 permissionários”, salientou o estudo do ISA. Apenas uma pessoa detinha 162 títulos sobre 8 mil hectares.
Pela lei, tudo que envolve “regulação e fiscalização das atividades para o aproveitamento dos recursos minerais” no país deve ser acompanhado pela ANM – criada em 2017, no governo de Michel Temer, que no mesmo dia extinguiu o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). A realidade, porém, é bem diversa.
O estudo do ISA menciona uma ação civil pública ajuizada em julho de 2019 pelo MPF em Santarém (PA) que apontou uma “omissão institucional notória e generalizada” por parte da ANM. O MPF solicitou à Justiça a interrupção da emissão de PLGs na região de Santarém. Dois anos depois, em 2021, com “a evidente explosão contínua do garimpo ilegal na bacia do Tapajós”, o MPF ajuizou uma nova ação, na qual pediu a suspensão de todas as PLGs nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, onde se concentram territórios Munduruku e Kayapó. O MPF apontou que “a necessidade de intervenção do Judiciário decorre unicamente da recalcitrância dos demandados no cumprimento de seus deveres”.
O levantamento do ISA menciona estudo realizado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pela UFV (Universidade Federal de Viçosa) que constatou “uma queda contínua nas ações de fiscalização por parte da ANM (e, antes, DNPM) no período de 2003 a 2020”. Em 2007 foram 7.873 ações, contra 1.047 no ano de 2020. “Segundo os autores” do estudo, diz o ISA, “a fragilização paulatina de um dos principais atributos da Agência se explica pela redução no orçamento autorizado para essas atividades e pelos valores executados, expressivamente menores do que os aprovados. Em média, ‘54% dos recursos previstos para ações discricionárias foram de fato empenhados pela organização’.”
Uma auditoria do TCU na ANM em 2019 constatou que “a atuação deficiente do DNPM [atual ANM] é uma situação crônica”.
O ISA aponta ainda que o acúmulo de PLGs por algumas poucas empresas e pessoas se deve a uma “interpretação deturpada da Lei nº 7.805/1989”. “Para a ANM não haveria entrave legal, por exemplo, para que pessoas físicas acumulem títulos minerários, desde que cada PLG respeite o limite de 50 hectares. Ou seja, o sentido de limitar a área de exploração contido na mencionada lei é deixado de lado e seus efeitos são anulados.”
O levantamento também aponta que, para entrar legalmente no mercado, “o ouro proveniente dos garimpos – que tem caráter de ativo financeiro ou instrumento cambial – precisa ser vendido a um PCO”, um Posto de Compra de Ouro, que é vinculado a uma DTVM autorizada pelo Banco Central. A venda, porém, precisar “estar ligada a uma lavra vigente e deve indicar o título minerário” para o recolhimento do imposto. Aqui reside uma “fragilidade fundamental” da cadeia do ouro, diz o estudo. “[Conforme uma lei de 2013, a de nº 12.844], a legalidade da origem depende apenas da palavra do vendedor e da presumida boa-fé do comprador. Ou seja: a legalidade do ouro é presumida, como o é do PCO/DTVM que o adquire.”
“Ainda que sigam obrigadas a prevenir e combater lavagem de recursos”, diz o estudo, as DTVMs “contam com relativa blindagem quanto à verificação das informações prestadas pelo vendedor. Há claros, inclusive, em que o próprio PCO promove a lavagem, atrelando o ouro comprado a um título minerário já autorizado – de acordo com o que foi revelado pela Operação Dilema de Midas, deflagrada e 2018 pela PF [Polícia Federal] em parceria com o MPF [Ministério Público Federal].”
Terras indígenas mais impactadas pelo garimpo ilegal fizeram aliança
Os Yanomami, os Kayapó e os Munduruku, três dos povos mais afetados pelo garimpo ilegal, criaram em 2021 a “Aliança em Defesa dos Territórios” para “expressar seu repúdio à atividade garimpeira”, “uma doença que os brancos estão trazendo para dentro dos nossos territórios”.
Em entrevista à Agência Pública em Brasília na semana passada, as lideranças Alessandra Korap Munduruku, Maial Paiakan Kayapó, Júlio Ye’kwana e Junior Hekurari Yanomami disseram que as consequências do garimpo ilegal em suas terras são devastadoras para a saúde dos indígenas, para a natureza e para a organização interna das aldeias. Alessandra e Maial querem que o esforço feito pelo governo federal a fim de extirpar o garimpo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, agora seja aplicado em outras terras indígenas, em especial no Pará. Desde janeiro o governo federal realiza uma operação de retirada dos garimpeiros na terra Yanomami, em Roraima.
“O Pará é um Estado totalmente devastado por conta da destruição da floresta. Resolvendo a questão da terra Yanomami, é um indicativo muito bom para as outras terras indígenas”, disse Maial. Há atualmente invasores nas terras Kayapó e Baú, nas quais grupos de garimpeiros passaram a jogar parte dos indígenas contra os próprios indígenas. “Essa pauta vem do processo de colonização do nossos Estado, de pessoas que vieram atrás de madeira e ouro nas nossas terras. Esse processo continua nos nossos territórios. O ponto é que a gente possa trabalhar de maneira sustentável, desenvolver um outro olhar sobre a terra.
Maial disse que ainda não é possível retratar, em número de indígenas doentes, o impacto do garimpo nas terras Kayapó porque houve um “apagamento das informações da saúde indígena” durante o governo Bolsonaro. No setor da saúde, disse Maial, “todo um sistema foi cooptado” pelo garimpo, com a participação de servidores que “ajudaram a fazer a entrada” dos garimpeiros nas terras indígenas.
Ameaçada diversas vezes por conta das denúncias que faz sobre o garimpo ilegal nas terras indígenas da sua região, Alessandra Korap disse que os indígenas desde o início do governo Bolsonaro “tentaram desarticular o garimpo, mas ele estava muito forte”. Foram entrando na terra indígena “máquinas, retroescavadeiras” que são vendidas normalmente nos municípios da região.
“A gente não imaginava que [o garimpo ilegal] ia expandir cada vez mais por conta das falas do governo. Quando ele [Bolsonaro] falava que os indígenas ‘vão poder explorar seu território’, era o momento que os próprios comerciantes, empresários já estavam ali articulados dentro do território para entrar na terra indígena. Aí chamaram muito mais gente para entrar. Aí os empresários se sentiram muito fortes, eles sentiram que eles também poderiam… Era dono de posto de gasolina, dono da loja grande, próprios vereadores envolvidos, prefeitura, senador.”
As lideranças indígenas mantiveram uma série de reuniões na semana passada em Brasília com representantes do governo Lula a fim de reivindicar ações do governo tanto para retirada dos garimpeiros das terras indígenas quanto para o atendimento na saúde indígena.
“[No governo Bolsonaro] pedimos muito, fizemos muitas denúncias para retirada dos invasores durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Ele não fez nada. Ele só fez brincar com os povos indígenas, fingindo que estava fazendo operações. Batia lá e voltava. Isso era uma coisa que eu não sei se faltou dinheiro, se foi desviado dinheiro, mas já vínhamos denunciando esse garimpo ilegal. O que tem que fazer agora? Os órgãos públicos têm que procurar solução para melhorar a saúde dos povos indígenas Yanomami”, disse Júlio Ye’kwana.
Junior Hekurari, da Associação Urihi, disse que, uma vez retirados os garimpeiros da terra Yanomami, o governo precisa continuar apoiando a população no território. “Não tem como [não ter apoio]. Hoje o povo Yanomami, durante quatro anos, cinco anos, sofreu bastante. O povo Yanomami não tem estrutura física para trabalhar. A malária mata, é forte, qualquer homem não vai aguentar conseguir trabalhar. Então o diálogo que a gente está fazendo com o Ministério dos Povos Indígenas, com a Funai, a gente busca que é preciso ajudar essas comunidades a construir a roça. Somente tirando os garimpeiros não vai resolver a situação da terra indígena Yanomami. [Também] temos problemas graves, que são sociais, que os garimpeiros plantaram, armaram muitos jovens com espingarda, pistola. […] Precisamos de um apoio muito grande do governo federal e dos parceiros.”
O estudo do ISA é organizado pela antropóloga Luísa Pontes Molina, com textos seus e de Estêvão Benfica Senra, Juliana de Paula Batista, Luiz Henrique Reggi Pecora e Rodrigo Magalhães de Oliveira. O trabalho foi feito em parceria com Associação Floresta Protegida, Hutukara Associação Yanomami, Associação Wanasseduume Ye’kwana, Instituto Kabu, Instituto Raoni, Associação Indígena Pariri, Associação Indígena Da’uk, Associação da Mulheres Yanomami Kumirayoma e Greenpeace Brasil, com apoio do EDF (Environmental Defense Fund).
A manifestação dos órgãos citados no relatório
A Agência Pública procurou no início desta semana a ANM, o Banco Central e a Receita Federal. Os dois primeiros se posicionaram.
A ANM afirmou que “está comprometida com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais. Todas as nossas ações institucionais são no sentido de assegurar o pleno funcionamento do setor mineral.”
“Recentemente, foram implementadas medidas que visam aprimorar a fiscalização e a transparência do setor. Entre elas, estão a criação de um painel de inteligência fiscalizatória, que permite a identificação de irregularidades e fraudes; o painel de fiscalização do ouro, que fornece informações sobre a produção e o comércio de ouro; e, o sistema de primeiro adquirente, que garante maior transparência na alocação de recursos oriundos da Compensação Financeira pela Exploração Mineral. As ações institucionais visam garantir o cumprimento das leis e regulamentos que regem o setor mineral, e, a implementação de medidas como essas são fundamentais para garantir a transparência e a eficiência das atividades do setor.”
A ANM disse ainda que é “um dos membros definitivos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), que consiste na principal rede de articulação institucional brasileira para o arranjo, discussões, formulação e concretização de políticas públicas e soluções de enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro, reunindo mais 80 instituições públicas pertencentes aos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e o Ministério Público”.
“Na agenda estabelecida pela ENCCLA, a ANM teve destaque na Ação 03/2022, que buscou aprimorar a supervisão em matéria de lavagem de dinheiro na atividade de mineração e de comércio de metais e pedras preciosas, com proposta de estabelecimento de um marco regulatório para disciplinar a aplicação dos deveres dispostos nos arts. 10 e 11 da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, no setor. O tema passou a compor a Agenda Regulatória 2022/2023 da ANM e a proposta normativa deverá ser deliberada em breve pela Diretoria Colegiada da ANM.”
O Banco Central afirmou, em nota, que “supervisiona as instituições financeiras e o cumprimento das normas relacionadas à prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo de forma contínua. As irregularidades encontradas nos procedimentos das instituições são tratadas e/ou comunicadas às autoridades competentes, quando necessário. O BC não comenta situações específicas de entidades reguladas”. A Pública, entretanto, não fez nenhuma pergunta sobre “situação específica”.
O BC argumentou ainda que “interage com outros atores que atuam na cadeia de comercialização do ouro em fóruns sobre o assunto, a exemplo das ações no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), bem como sempre contribuiu e se colocou à disposição para integrar grupos de trabalho com o intuito de melhorar a ação do Estado sobre a matéria. Nesse sentido, o BC apoia iniciativas que possam aprimorar o marco legal para a fiscalização do comércio do ouro tais como, por exemplo, a revogação da presunção de legalidade na aquisição do ouro por instituição financeira e a exigência de nota fiscal eletrônica. O BC também apoia a criação de mecanismos privados que aumentem a rastreabilidade da cadeia produtiva do ouro.”
O Banco Central deixou de comentar diretamente as recomendações contidas no relatório do ISA a respeito do papel do BC, que são as seguintes, na íntegra, e que foram encaminhadas pela Pública ao BC:
“Cobrança junto às Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários para que implementem os mecanismos de prevenção e combate à lavagem de bens e capitais (Lei nº 9.613/1998), em especial as obrigações de qualificar seus clientes (know your costumer) e de reportar transações financeiras suspeitas — o que deve considerar sua área geográfica de atuação e a magnitude dos impactos financeiro, jurídico, reputacional e socioambiental relacionados, conforme exigido pela Circular 3.978/2020;
Reiteração da responsabilidade civil das DTVMs pelo ouro ilegal adquirido por seus Postos de Compra de Ouro, já que se trata de um vínculo de contrato de mandato mercantil, no qual os PCOs compram o ouro em nome das DTVMs e são apenas fieis depositários desse produto; Aplicação mais ágil e rigorosa de sanções às DTVMs/PCOs que compraram ouro ilegal.”
Fonte: Agência Pública